As livrarias mega store eram novidade nos shoppings da cidade. Antes, as livrarias eram bem menores. Perguntava-se pelo título do livro. Tem, tem; não tem, encomenda. E os vendedores faziam cara feia se você folheasse livros ou revistas. Mas nas mega stores havia poltronas confortáveis, tocava-se música agradável, vendia-se café. E havia um enorme acervo de livros a ser saboreado. Isso mesmo: era permitido manusear o produto, folhear, experimentar… e não comprar.
O menino que pouco tempo antes ia ao shopping para jogar boliche com os amigos, tomar um lanche ou comprar roupa, às vezes um CD, agora tinha outra motivação: os livros. E essa transformação coincidiu com a mudança no conceito de livraria. Então o menino olhava as vitrinas, corria os olhos pelas estantes, de vez em quando saía com algum livro. Desde então adquirira o hábito de estar sempre lendo alguma coisa. A vida sem leitura ficava esvaziada.
Mas não fora sempre assim. Nos tempos de colégio, anos antes, salvo uma ou outra exceção, lia mais por obrigação que por prazer. Mas lia, mesmo quando tinha a impressão de ter perdido o tempo sofrido da adolescência lendo livros que não entendia nada. Nessa época, ouviu falar em um escritor português, ainda em atividade, chamado José Saramago. De vez em quando, cismavam de incluir Memorial do Convento, romance de sua autoria, na lista de leituras obrigatórias para o vestibular. Saramago era dono de uma escrita peculiar, assegurava a professora, as frases eram retorcidas, os parágrafos intermináveis, nos diálogos não havia travessões nem aspas, a ortografia era a vigente em Portugal. Uma tortura.
O menino soube depois que esse escritor estava em alta. Escrevera um livro ousado, O Evangelho segundo Jesus Cristo, que, por conta da repercussão em Portugal, país fortemente católico, levou o escritor a fixar moradia na Ilha de Lanzarote, na Espanha. Com Ensaio sobre a Cegueira Saramago se firmaria como um dos nomes cotados para o Nobel de Literatura, prêmio que de fato receberia.
Já na faculdade, nessa época da invasão das mega stores, uma professora recomendou o romance recém-lançado A Caverna, primeira obra de Saramago que ele leu. E gostou muito. Ainda naquele ano o menino leria ao menos outros dois romances do autor. Esse era o contexto quando deu com uma edição caprichada, recheada de aquarelas de Arthur Luiz Piza no miolo (e não apenas na capa, como nos demais livros), intitulada O Conto da Ilha Desconhecida. Com o livro em mãos, o menino encontrou uma poltrona disponível. Sentou-se para ler um trecho.
No conto, um homem vai ao palácio pedir ao rei um barco. Quer ir à procura da ilha desconhecida:
Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu te pudesse dizer, então não seria desconhecida.
O rei lhe dá o barco. A mulher da limpeza do palácio sai pela “porta das decisões” e decide unir-se ao homem. Que sai em busca de tripulantes para a jornada, mas volta (sem homens) com um naco de queijo e uma garrafa de vinho para jantar com a mulher no barco, atracado ao porto. Os dois apenas. Pousam lá.
Na livraria o menino, que em princípio leria um trecho do livrinho de 64 páginas, se deu conta de que em mais alguns minutos concluiria a leitura. Será que pode?, ele se perguntou. Que era permitido ler trechos, isso ele já sabia. Mas um livro todo… Como se vigiassem o seu olhar, o menino prosseguia também ele atrás da sua ilha desconhecida, vencendo o medo, encarando as câmaras de segurança, o olhar de esguelha da pessoa ao lado. Todos saberiam que ele lera um livro inteiro e não o comprara. Que lera que “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar”, e que, quem sabe por isso, não compraria o livro. Não naquela hora. Não aquele exemplar. Gostar bastava.
Seu conto preferido? O homem não sabe. Certamente leu inúmeros contos tão bons quanto, talvez alguns melhores. Mas jamais se esquecerá de, comovido, fechar o livro, levantar-se da poltrona, esquecê-lo em um canto qualquer e deixar a livraria. O menino de então vivia algo desconhecido, e não sabia que aquela busca estava apenas começando.
Trecho do conto ‘O conto da ilha desconhecida’, de José Saramago
A mulher da limpeza pousou o balde, meteu as chaves no seio, firmou bem os pés na prancha, e, redemoinhando a vassoura como se fosse um espadão dos tempos antigos, fez debandar o bando assassino. Foi só quando entrou no barco que compreendeu a ira das gaivotas, havia ninhos por toda a parte, muitos deles abandonados, outros ainda com ovos, e uns poucos com gaivotinhos de bico aberto, à espera da comida, Pois sim, mas o melhor é mudarem-se daqui, um barco que vai procurar a ilha desconhecida não pode ter este aspecto, como se fosse um galinheiro, disse.
Trecho do conto ‘Silente’, de Renato Tardivo
A primeira vez que vi a morte de perto foi quando o meu avô faleceu. Lembro que, no momento de fechar o caixão, alguns parentes cuidaram para me afastar. Em vão. Apenas mais distante que os demais, vi meu pai, debruçado sobre o corpo do pai dele, sopra-lhe alguma coisa no pé do ouvido. Jamais esqueci essa cena.
No dia seguinte ao enterro, eu e meu pai sozinhos no carro, tomei coragem e perguntei:
Pai, o que você disse pro vovô aquela hora?
Renato Tardivo nasceu em São Paulo, onde vive. Escritor e psicanalista, é autor dos livros de contos Do avesso (Com-Arte/USP) e Silente (7Letras), e do ensaio Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp). É colunista do site da revista Cult.