Há algum tempo, vinha crescendo dentro de mim a vontade de ler alguma coisa escrita em português, mas que não fosse de escritores nem do Brasil e nem de Portugal. A consciência que Portugal deixou outros filhos por aí, para ser simpático com nossos amigos lusitanos, deixava-me a pensar sobre o que será que eles escreviam nestes outros países. Pus-me a pesquisar e o nome mais forte que surgiu foi o de Mia Couto, moçambicano que é considerado um dos maiores escritores africanos da atualidade. Só então, surgiu a possibilidade de ler A confissão da leoa.
“Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava Nungu, o atual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro tempo , falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse reinado há muito que morreu”. (pg. 13, trecho inicial do livro).
O livro é narrado em primeira pessoa, alternando os capítulos entre o Diário do caçador, por Arcanjo Baleiro; e o caderno de Mariamar, chamado de Versão de Mariamar. Desta forma, a história se inicia na aldeia de Kulumani, que vem sofrendo ataques de leões. O administrador, Florindo Makwala, propõe-se a procurar um caçador para acabar com o problema e conseguir se projetar politicamente em decorrência da situação. Para que o seu objetivo fosse alcançado, era preciso que alguém registrasse tudo que iria acontecer, surgindo assim com o grupo o escritor Gustavo Regalo. No decorrer das páginas, vamos também acompanhando a história de Mariamar. Criada em Kulumani, a garota, ao lado da mãe, Hanifa Assulua, são as maiores responsáveis pela imersão do leitor na cultura africana. O relacionamento delas com o pai/marido Genito Mpepe é outro ponto a ser destacado; e que se torna surpreendente com o passar do livro. Ponto alto na Versão de Mariamar são suas lembranças do relacionamento com o tio-avô, Adjiru Kapitamoro; o qual parece ser o único que a valoriza e a tem como pessoa. Assim, as narrativas vão se cruzando, revelando histórias dentro de histórias até chegar ao final; que não deixa a desejar.
Sobre o estilo, Mia Couto constrói orações curtas, no entanto, sem descambar para o simplório; longe disso, está muito mais para um requinte rápido, do tipo que não precisa esbanjar charme, pois é elegante por si mesmo. A prosa do escritor moçambicano poderia facilmente passar por poesia, tamanha a carga sentimental expressa em cada frase, possibilitando àquelas pessoas que amam o hábito – ritual, quem sabe – da leitura, uma experiência completa de história e estilos, sem priorizar um ou outro.
Para encerrar, deixo outras citações que me chamaram a atenção:
“Quanto mais vazia a vida, mais ela é habitada por aqueles que já foram: os exilados, os loucos, os falecidos”. (pg. 46).
“Fábulas me ensinaram, a vida inteira, a distinguir o certo do errado, a destrinçar o bem do mal. Numa palavra, foram os animais que começaram a fazer-me humana”. (pg. 88).
“Uns dizem que o peso a tornou louca. Eu tenho fé na sua demência. Só as pequenas loucuras nos podem salvar da grande loucura”. (pg. 89).
Livro: A confissão da leoa
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras