Resenha do livro ‘O Distante Eufrates’

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Este texto é o primeiro da série Livros que você precisa conhecer, que busca apresentar ao público obras de grandes escritores, não tão conhecidas assim, embora estes livros tenham despertado uma profunda conexão emocional nas pessoas que as leram. E o Homo Literatus traz a você estes testemunhos.

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autor

De início achei esse livro um pouco complicado, até mesmo para descrevê-lo, pois exige certo conhecimento sobre a história, o holocausto, o nazismo e sua relação com os ciganos e, principalmente, uma noção dos conceitos do conhecimento Judeu e da Cabala. Além de procurarmos entender a filosofia da obra. Mas, apesar da complexidade, uma vez entendido, mostra-se um romance bastante denso, rico e com uma grandeza artística literária.

Mesclando o corriqueiro com o místico, o banal com o extraordinário, e o mundo do despertar com o mundo dos sonhos, o romance O Distante Eufrates é a história de Alexander, filho único de um rabino de Windsor, Canadá, cujo pequeno mundo é composto pelos pais, o Cantor e a mulher do Cantor. Ainda quando menino, Alexander toma conhecimento de um segredo cuja revelação ele não suporta, e, como resultado, tenta acumular o máximo de conhecimento possível, como se assim pudesse tornar-se capaz de desvendar os segredos do próprio universo. Com estilo transparente, o escritor Aryeh Lev Stollman criou um quadro surpreendente da alma de um jovem às portas da maturidade. O Distante Eufrates faz com que nos perguntemos como é possível encontrar o significado da vida num mundo pós-holocausto; onde podemos situar a fronteira entre a sanidade, a loucura e a transcendência; e quais são as nossas responsabilidades com nós mesmos e os outros. A obra aborda argutamente a questão do desejo insaciável que o homem tem na busca do conhecimento e da reconquista da própria origem, o mítico e longínquo Eufrates do Éden, ao qual não conseguimos retornar.

Essa romance é do neurorradiologista e escritor, cujo pai é um rabino ortodoxo, Aryeh Lev Stollman. Ele cresceu em uma casa cercada por vários livros religiosos e seculares. Como relativamente percebido na sinopse da obra e se confirmando para quem leu o tal romance, sua própria ficção tem uma qualidade quase profética e típica, que é, em parte, a mistura de teoria científica e religiosa que o autor coloca em suas tramas. Tudo a partir de pesquisa médica e cabalística, trechos bíblicos, históricos e fábulas permitem refletir o drama que está sendo dito no romance. O narrador do primeiro romance premiado do escritor Stollman, O Distante Eufrates (1997), é um menino judeu precoce vivendo em uma bela cidade de fronteira canadense. As descrições do que ele vê e sente revela as relações complexas dos outros personagens que embalam as páginas do romance. Seu pai rabino intelectual está pesquisando a forma da Divindade, sua mãe quer um segundo filho e suas avós alemãs, exiladas judeus, voltaram para sua terra natal após a Segunda Guerra Mundial.

Todos nós, como indivíduos, como povo e como nação, temos que navegar no nosso passado, na narrativa histórica que carregamos conosco, a fim de negociar o nosso futuro. E em nenhum lugar isso é mais aparente do que na ficção de Stollman.

Situado em Windsor, uma cidade da província canadense de Ontário, durante os anos 1950 e 60, o romance O Distante Eufrates é notável tanto pela prosa eloquentemente discreta do escritor Stollman e pela facilidade com que ele constrói sua trama engenhosa. O narrador, Alexander, é, como o autor, o filho de um rabino, e à primeira vista, a história que ele conta parece ter toda a naturalidade e especificidade de uma reminiscência da infância. Apenas nas páginas finais é que se torna totalmente evidente qual é o propósito de Stollman, que para um efeito astucioso ele o escondeu até o fim.

Dando continuidade à história, um menino solitário, Alexander, filho de Sarah, passa a maior parte de seu tempo com os adultos. Ao lado de sua família vive um cantor sem filhos e sua esposa. Berenice, uma mulher animada, com uma paixão por sapatos finos, é a melhor amiga de Sarah e uma segunda mãe para Alexander. Além disso, a irmã gêmea do Cantor, Hannalore, os visita frequentemente, a qual vem de Grosse Pointe, nos arredores de Detroit, onde trabalha como governanta para Henry Ford.

O mundo de Alexander é maior do que poderia sugerir este breve comentário. Seu pai, um homem de profunda erudição, tem o compromisso de repassar seu aprendizado para o seu filho. Quando ele lê para o menino, eles repetem cada frase em Hebraico, Inglês e Alemão. O zigue-zague azul do Eufrates no mapa na parede mostra o quanto o estudo do rabino é sério. O tal rio Eufrates é o mais longo e um dos mais historicamente importantes rios da Ásia Ocidental.

”Nossos antepassados”, diz o personagem Alexander, ”não veio originalmente de Kana’an, não de uma Jerusalém terrena, mas a partir do Eufrates com sua origem no Éden… E não podemos esquecer que nunca os encontraremos de novo”.

A obra também permeia nas páginas o Holocausto. Os ciganos, uma das menos conhecidas vítimas de tortura e morte nas mãos dos nazistas, são brevemente e obliquamente invocados como emblemas de separação e sofrimento, como se fosse para ilustrar o aforismo proferido por um sobrevivente do campo de concentração chamado Jean Amery: “Qualquer um que tenha sido torturado permanece torturado”.

Mas, o verdadeiro foco do romance é o outro Eu do escritor Stollman, um jovem mimado chamado Alexander, que pode ser assombrado pela história do Holocausto, mas é ainda mais fascinado por ela.

Da forma como comenta sobre as experiências de sua infância e adolescência, Alexander é tido como fantasioso, o que explica o porque de sua mãe coruja dizer várias vezes: “ele é muito de um sonhador”.

“Eventualmente suponho que, inevitavelmente, me tornei em um objeto de estudo”, Alexander diz de si mesmo. “Levantei-me e examinei o recipiente da minha alma cuidadosamente no espelho do armário”. O que ele espera encontrar são “os mais pessoais e valiosos dos tesouros, o nosso conhecimento acumulado…”, que “está trancado, como prisioneiro mantido dentro do cofre que está se desintegrando em nossos ‘Eu’ corpóreo”.

Tais grandes floreios são o preço do ingresso para um mundo interior que o autor consegue criar, um reino em que mesmo as imagens comuns e os sons são feitos para parecer simultaneamente encantador e demoníaco.

Quando Alexander comenta sobre a paixão de seu pai pela a língua e a cultura de civilizações mortas que há a muito tempo no antigo Oriente, todo o empreendimento acadêmico parece ser uma busca de algum conhecimento maravilhoso, mas proibido, e a correspondência de colegas estudiosos de seu pai se transforma em poderosos talismãs.

Na verdade, o sonhador jovem Alexander está vagando em direção a uma revelação que vai quebrar a fachada da ordem e da certeza que seus pais têm lutado tanto para manter. Mortes começam a surgir no aqui e agora de sua infância na cidade fronteiriça canadense de Windsor: alguém começa a matar e mutilar os cães da vizinhança, um casal de filhos é morto em seus próprios quintais em um acidente de automóvel bizarro e de alguma forma todos esses horrores são ligados de uma maneira que Alexander pode apenas vagamente compreender.

Então o garoto começa a se modificar emocionalmente. Na tarde de seu aniversário de 16 anos, por exemplo, Alexander se enrola nas cortinas de seu quarto e se recusa a sair. Ele decidiu realizar o ritual chamado Tzimtzum (o qual explicarei). Quando Alexander desliza para o que pode ser um colapso nervoso, isolado no seu quarto, ele se imagina entrar em um estado místico e exaltado. Alexander acredita que ele é o todo-poderoso no momento da criação, quando ele “se retira para si mesmo”, numa espécie de contração em “seu próprio ser, e ‘faz’ dentro de si mesmo um lugar isolado em que define o seu próprio universo”. Isso é uma noção que se baseia em tradições do cabalismo que Alexander explorava na biblioteca de seu pai.

Essa ideia ou conceito aparentemente estranho, realizado por Alexander, remete à Tzimtzum, que se refere à noção cabalística sobre a Criação, de acordo com a qual Deus “contraiu” sua infinitude com a intenção de permitir um “espaço conceitual” dentro do qual um mundo finito e aparentemente independente pudesse existir: o universo.

Se a crise espiritual de Alexandre o leva a depressão, a loucura ou ao discernimento divino, o resultado é um flash de iluminação em que todos os mistérios mais sombrios são revelados. Uma das revelações é sobre o Cantor velho e gentil e sua irmã gêmea atormentada e isso é tão inesperado, tão horrível, que faz com que qualquer coração dispare.

Por isso, a ansiedade de Sarah sobre Alexander é alimentada não só por suas reações inapropriadas ou tidas como loucuras, mas por dificuldades em sua própria vida. Em tenra idade, o irmão de Sarah adoeceu e foi institucionalizado em um hospital psiquiátrico. Isso levou os pais do rabino se opor seu casamento com ela, com medo que Sarah pudesse sofrer o mesmo destino.

Outro caso é que Sarah foi incapaz de ter outro filho. Como Berenice explica a Alexander: ” Sua mãe está tentando novamente por um longo tempo, mas a abertura de seu ventre é muito frouxa. Assim como um alçapão. Você deve ter sido inteligente para manter a porta fechada o tempo todo… Um sobrevivente real, para ter figurado tudo antes de você nascer!”.

Por isso, é uma grande notícia quando Sarah finalmente anuncia que está grávida. Para deixá-la descansar, Alexander é enviado para ficar durante o verão com Berenice e o Cantor em sua casa de campo no Lago St. Clair. Berenice sempre foi ligada ao Alexander, e agora, embalada pelas longas semanas de intimidade, ela revela a terrível verdade sobre seus familiares na Europa durante a guerra. Em seguida, ela pede para que ele jure silêncio. ”Algumas coisas”, ela diz a ele, ”deve sempre permanecer em segredo”. Algumas semanas mais tarde, Sarah perde novamente mais um filho, devido a um aborto espontâneo.

nivio1A parte final do livro detalha os efeitos dos “devaneios” e dicas de Alexander em suas causas complexas. Qual a finalidade do escritor Stollman disposta na história de Alexander e sua família complicada? A maioria dos romances seriam conteúdos para mostrar como nossas vidas são moldadas pela história, mas esse romance parece buscar algo ainda maior. No coração do O Distante Eufrates encontram-se as questões mortificadas pelo Holocausto e seu legado: como devemos tentar resolver por nós mesmos o enigma da existência de Deus e cultivar um senso de misericórdia em uma era implacável?

O Distante Eufrates
Aryeh Lev Stollman
Bertrand Brasil
2001
208 páginas

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Marcelo Vinicius é escritor e fotógrafo, autor do livro "Minha Querida Aline" (Editora Multifoco). Colunista do portal Homo Literatus e editor da Revista Sísifo. É amante da arte, especialmente a fotografia, o cinema e a literatura. Graduando em Psicologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na qual faz parte da equipe editorial da revista de Filosofia IDEAÇÃO-UEFS, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia (NEF); é integrante do grupo de estudos em Filosofia da Arte e do grupo de pesquisas em Filosofia Contemporânea na UEFS. É certificado pelo curso de fotografia do Cento Universitário de Cultura e Arte (CUCA) e teve suas fotografias selecionadas por diversos festivais. Participou de jornais regionais, do projeto de extensão sobre cinema e produção de subjetividade e do projeto de Psicologia Social na UEFS. Foi responsável também por coordenar projetos acadêmicos sobre os escritores Franz Kafka e Fiódor Dostoiévski, ainda co-coordenou projetos sobre os cineastas Bergman e Hitchcock e apresentou o tema “A relação entre o escritor Dostoiévski e o cineasta Hitchcock em Festim Diabólico”, na II Mostra 100 Anos de Cinema: Alfred Hitchcock.

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