O conto de Stevenson é o drama de Markheim, homem que mata o dono de uma loja de antiguidades, com quem costumava negociar, para roubar-lhe o dinheiro: “Ter executado o plano e ficar sem o lucro seria uma falha lamentável. O dinheiro – era isso que preocupava Markheim agora.” (p.96). Após cometer o crime e enquanto está à procura do dinheiro, recebe a visita de um outro, que o confronta e que lhe aponta todos os erros que tem cometido, demonstrando que sua vida só tem uma direção: “Para baixo, para baixo é seu caminho. E nada, a não ser a morte será capaz de detê-lo.” (p.116). Markheim defende-se argumentando que o ambiente em que vivia o influenciou para o Mal e que, mesmo tendo se rendido e sido indulgente, ainda há nele os resquícios da fé e o “ódio ao Mal” (p.120). Desse ódio, Markheim extrai a energia e a coragem para entregar-se à polícia.
O diálogo entre Markheim e este “outro” assemelha-se a um monólogo interior, a um fluxo de consciência, como se as duas vozes, personificadas, – a do Bem e a do Mal – fizessem suas acusações e contrapontos num tribunal, que é a mente do criminoso. “Bem e Mal correm com força dentro de mim…” (p.115)
Para cada acusação de erro e queda que o outro aponta, o argumento de Markheim fundamenta-se numa circunstância exterior a si mesmo, a de que o ser humano pode ser levado a praticar crimes, mas a sua alma não se compromete com o Mal, pois ainda possui a fé em seu interior.
“O homem vive para me servir, para espalhar olhares sombrios sobre as cores da religião, como você faz, sempre se rendendo ao clamor dos desejos” (p.111)
“E você quer me julgar por meus atos! Mas será que pode me enxergar por dentro? Consegue entender que a maldade para mim é algo detestável? Pode vislumbrar em meu âmago a escrita clara da consciência, jamais deturpada por sofismas, embora tantas vezes desprezada?” (p. 109)
Diz ainda que o crime não anula as “fontes do Bem” e que a pobreza o arrastou e açoitou, mas que não se renderá ao Mal, seu Eu está determinado a ter paz: “Começo a ver-me totalmente mudado. Estas mãos, agentes do bem; este coração, da paz.” (p.114)
Este conto remete-me à condição humana em suas lutas entre querer fazer o que é certo – o Bem – e a fragilidade que lhe é inerente e que induz ao erro – o Mal. O diálogo entre Markheim e este outro, que se apresenta como o um agente do Mal (“O Mal, para o qual vivo…”) é uma figura do ser humano lutando com a sua consciência – essa voz interior que todos ouvem, quer queiram, quer não – e lutando, também, com os desejos que fatalmente conduzem à ruína moral. Bem se poderia chamar de “tormento” a esta onda que percorre o corpo e a mente de Markheim, arrastando-o até a consumação do crime.
Não posso ignorar a lembrança que logo me assalta ao falar em tormento: é um “tormento” semelhante que arrasta também Raskólhnikov (em Crime e Castigo, de Dostoiévski), ainda que por motivos diferentes. Pensando melhor, não tão diferentes, pois os dois personagens estão em busca de dinheiro e oprimidos diante da situação de pobreza e opressão em que se encontram. Markheim vai à loja de antiguidades e mata o negociante e Raskólhnikov, à casa da velha Alíona Ivãnovna para se apoderar dos objetos e do dinheiro.
Outro elemento comum aos dois “atormentados” é o desprezo total pelas vítimas, que chega ao ponto de concluírem que as mesmas não são dignas de viver. Raskólhnikov considera que a velha é má e estúpida e não merece viver (p.80) e Markheim considerava o negociante mesquinho e ao vê-lo morto pensou que era “estranhamente mais mesquinho do que fora em vida” (p.90).
Há, porém, um momento em que ambos sentem-se inseguros diante do horror do crime: Markheim incomoda-se com a ideia de que o morto pudesse voltar (p.94) e poderia “denunciar-se, não por medo, mas unicamente por horror e aversão ao que fizera.” (p.96). Raskólhnikov apavora-se com a ideia do crime que está planejando: “ Oh, meu Deus , como isso é repugnante! Ah, sim, sim, eu…não; isto é um absurdo, uma estupidez! – acrescentou resolutamente. – …De que porcaria é capaz a minha alma!…é sujo, é brutal, mau!…” (p.16)
Outro elemento não menos importante é a vivência religiosa, que os remete a um tempo em que acreditavam em Deus e no Bem. É importante porque o bem está (nestes casos) relacionado à religião e à fé em Deus:
Raskólhnikov ”Ainda continuas a pedir a Deus…como dantes?…”(p.49)
Markheim: “…eu não would i know if i had herpes o vi durante os cultos, e não era a sua voz, cantando hinos religiosos, a mais alta de todas?” (p.118)
O passeio pelo texto de Dostoiévski foi um atrevimento, mas não me foi possível evitar a lembrança. Posso até afirmar que isso acontece com a maioria dos leitores, isto é, um texto que “conversa com outro” e redireciona as nossas primeiras impressões. Voltando, então, a Markheim: é possível dizer que é um dos grandes textos sobre a condição humana e pode até ser uma fonte de alento nos momentos em que consideramos que o mundo está irremediavelmente perdido – o ser humano é capaz de restaurar-se e não sucumbir, “não vender a sua alma ao diabo”. É uma questão de escolha.
Referências
O OUTRO; três contos de sombra. Jack London, Hans Christian Andersen, Robert Louis Stevenson. Tradução de Heloisa Seixas e Ana Lúcia Salazar Jensen. – Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2002. 130 p.
DOSTOIÉVSKI, Fiodor Mikhailovitch, 1821 – 1881. Crime e castigo. Tradução de Natália Nunes. – São Paulo: Abril Cultural, 1982.