Comecei a ler Milton Hatoum com um pé atrás, coisa corriqueira em nós leitores brasileiros, tão desconfiados daquilo que é nosso, nossa literatura; e envergonhado, fui me surpreendendo ao virar cada página do livro. Mas falemos da história.
O livro é um emaranhado de narradores, um novo a cada capítulo, numa reconstrução de memórias. No entanto, estes narradores reconstroem uma Manaus desconhecida da maioria dos brasileiros. Quando penso na capital amazônica me vem à mente os clichês de histórias na selva, mas Hatoum quebra isso, apresentando uma cidade provinciana, mas cosmopolita. A princípio, nada fica muito claro, sabe-se apenas de uma mulher que retorna ao centro da família em que foi criada, após vinte anos. Então o relato vem vindo de cada um destes familiares, como que relembrando os fatos a esta recém-chegada. E os fortes personagens de Hatoum vão se revelando, a matriarca Emilie; o filho mais velho, único a aprender árabe; os outros dois, que não aceitam a irmã; o calado marido de Emilie, adepto dos Islamismo; além da menina surda-muda Soraya Ângela; entre outros. A sensação que vai se contruindo é de algo que se escapa, uma estranha nostalgia.
O personagem que mais me intrigou na história foi o marido de Emilie; sempre calado, administrando a Parisiense, loja da família. Entre ele e a esposa há a tensão religiosa, afinal ele é islâmico e ela católica, mas este conflito torna-se leve na forma como é narrado. Num trecho interessante, um dos narradores, Dorner, amigo da família, descreve sua relação com o pai da família.
“Foi difícil arrancá-lo do mutismo, pois sempre fora fiel a uma vida reclusa, até mesmo nas reuniões noturnas com os patrícios e vizinhos lá no pátio dos fundos, onde todos tagarelavam, enquanto teu pai, absorto, talvez pensasse na imensa infelicidade dos não conseguem ficar sozinhos”.
Nos últimos tempos, estou mais atento ao poder da metáfora dentro da narrativa; e em Milton Hatoum achei uma estrada pavimentada das mais belas. O escritor amazonense parece trançar o texto como se a levar o leitor a desfrutar de uma confortável rede de dormir – embora, ao contrário do que se espere de uma história em Manaus, elas apareçam tão pouco. Dentro destas metáforas que me chamaram a atenção, separei o trecho abaixo para destacar como o melhor exemplo do que eu entendo por “prosa poética”.
“Antes das seis, tudo já era visível: o sol parecia um olho solitário e brilhante perdido na abóbada azulada; e de uma mancha escura alastrada diante do barco, nasceu a cidade”.
Conforme ia lendo, uma dúvida se apossou a respeito dos narradores do livro, pois a linguagem era toda a mesma, o que me pareceu uma incoerência, a princípio. Conquanto isto me incomodasse, eu não conseguia parar de lê-lo, pois era muito envolvente; mas ao final do livro, a narradora do primeiro capítulo, como se falasse diretamente comigo, responde a questão, afirmando que ela ouviu todos aqueles relatos e que os reuniu escritos sobre a voz narrativa dela, o que fez completo sentido, totalmente coerente.
Para fins de conversa, este é um livro-resposta para aqueles que dizem não haver “alta literatura” sendo escrita no Brasil. A leitura prende e intriga do começo ao fim, o que só me instiga a querer ler outros livro do Hatoum, que certamente serão resenhados por aqui.
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