Resenha: Sem sangue – Alessandro Baricco

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O livro Sem sangue de Alessandro Baricco (Companhia das Letras, 2008) apresenta uma estória que se passa num período pós-guerra. Baricco informa, no início do livro, que os acontecimentos são imaginários e, portanto, não os situa no tempo. Há elementos que remetem às experiências médicas dos nazistas e, no entanto, a localização da casa da fazenda, próxima a um milharal, remete ao continente Americano. Mas esses não são os principais elementos do livro.

Uma casa é invadida por homens fortemente armados, pai e filho são assassinados. A filha, que sobrevive ao massacre escondida num buraco abaixo do piso, presencia a execução e quando tudo parece ter acabado é encontrada por um dos assassinos. Surpreendentemente, ele a poupa.

Aproximadamente quarenta anos depois, a menina e o assassino se encontram. O que poderá acontecer entre essas duas pessoas marcadas pela violência? Como sobreviveram às lembranças das atrocidades? Em que tipo de pessoa se tornaram?

sem sangueA primeira parte do livro descreve a invasão da casa e um diálogo feroz entre vítima e algoz, em frases curtas, com silêncios e cortes que fazem a retomada da memória dos personagens e que permitem ao leitor construir o cenário e entender que se trata de uma vingança pessoal, cujo motivo foi a guerra. O texto é dinâmico, com frases curtas e diálogos nos quais se delineia a estória, seus personagens e os motivos para estarem ali. A escolha do vocabulário e a descrição detalhada dos movimentos da tortura física e mental imposta ao médico Manuel Roca por seus adversários demonstra toda a violência das cenas: um tiro que “explode” seu joelho que o faz gritar e se arrastar de dor, um dos homens pisa e aperta o joelho, aumentando o sofrimento da vítima, a rajada de metralhadora que transforma o menino em uma “papa de chumbo e sangue”, a tensão criada pela repetição da ameaça de morte e pela agonia do ferido. A casa é finalmente abandonada, ficando lá os mortos e a menina viva no buraco. Alguém do grupo resolve atear fogo à casa, o que faz com que o “salvador” da menina se desespere, já que é o único que sabe de sua existência. Nesse episódio, há uma semelhança entre esse Tito de Alessandro Baricco e o Tito, general romano que invadiu Jerusalém: o Tito, salvador de Nina, tenta protegê-la da morte certa e, no entanto, contra a sua vontade, seus companheiros põem fogo à casa onde está escondida a menina. Semelhantemente, Tito, o general, ao invadir Jerusalém, deu ordens para que o Templo fosse poupado. No entanto, os soldados em fúria atearam fogo ao local, contrariando suas ordens. Mesmo nome e mesma tentativa de salvamento. Ambos não sabiam, porém, do resultado da catástrofe que tentaram impedir: Tito deu como morta a menina que, no entanto, sobreviveu e o outro Tito não sabia que o que estava sendo destruído era apenas a sombra de algo muito maior que também sobreviveria.

Há um rompimento de tempo na estória e a segunda parte apresenta a menina, Nina, como uma mulher de pouco mais de cinquenta anos e o encontro com o seu “salvador”, Tito, um senhor de sessenta anos ou mais que trabalha em um quiosque de loterias.

Esse encontro parece ser a chave para esclarecer as indagações que ficaram sobre morte do pai de Nina e dos acontecimentos da vida de cada um dos personagens. No entanto, as versões dos personagens sobre os acontecimentos, desde a invasão da casa até o momento em que se encontram, são diferentes e as suas memórias estão entrelaçadas com as memórias de pessoas que já morreram e de acontecimentos de que só ouviram falar, o que dificulta ao leitor a obtenção de uma resposta “pronta”. É preciso ouvir cada personagem, seguindo as pistas nas falas e ainda assim o mistério permanece.

O diálogo entre o ex-guerrilheiro e a sobrevivente é rico em filosofia sobre a guerra, sobre a esperança de um mundo melhor, sobre as lutas necessárias para que o sonho seja alcançado: “Era preciso passar pelo sofrimento”, “Não se pode semear sem antes arar. Primeiro se deve sulcar a terra.”, “… por mais alto que fosse o preço… nós combatíamos por um mundo melhor…”, “… que importava se uma criança morresse estraçalhada contra uma parede, ou dez crianças?… era preciso sulcar a terra e nós o fizemos…”. As explicações do guerrilheiro sobre a sua luta e o sentido da vida tentam justificar a guerra como o único caminho. O confronto com Nina, no entanto, enfraquece suas convicções, de maneira que ele se dá conta de que, por fim, não estava vivendo no “sonho” pelo qual havia lutado e matado.

A surpresa desse encontro está na reação de Nina, que parece mudar de ideia em relação a Tito. Ela decide escutá-lo, ouve todas as suas explicações e o leitor atento vai acompanhando a raiva de Nina, a crescente indignação com as razões da guerra. E então a surpresa: a empatia e a tentativa de aproximação.

Nesse ponto da leitura, a pergunta pode ser a seguinte: o comportamento de Nina corresponde ao que uma criança traumatizada pelo horror da morte e da guerra demonstraria? A busca pelo seu “salvador” (parece que ela esteve em seu encalce durante todo o tempo) seria empatia pelo assassino de sua família, como um mecanismo de defesa para afastá-la do sofrimento de toda a vida e permitir a sobrevivência, assim como acontece com as vítimas da Síndrome de Estocolmo?

Síndrome de Estocolmo é um mecanismo de defesa que se manifesta em algumas vítimas de sequestro e de diferentes tipos de violência que, de certa forma, “se apegam” ao causador da violência, criando empatia a ponto de sentirem-se mais seguras com eles e defendo-os quando interrogadas a respeito.

No caso de Nina, terá sido o trauma da violência que presenciou tão arraigado que o tenha carregado pela vida toda, em busca daquele que o causou, numa tentativa de buscar proteção dos males do mundo… se ele a salvou uma vez, poderá salvá-la sempre? Nina estaria retomando o processo da dor do passado, de maneira doentia, ainda que inconsciente, em sua busca pela cura e pela paz?

Essa busca da paz sem sangue, por uma mente perturbada pela atrocidade da guerra, é apenas uma das hipóteses do livro de Baricco, cujo tema não é original, mas é muito bem conduzido e consegue manter a atenção do leitor até o final.

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