“Somos todos culpados de tudo”, disse Dimitri Karamazóv. Será?
Muitos são os motivos que fazem de Os Irmãos Karamázov (1879), romance de Fiódor Dostoiévski, meu dileto livro. Nessa obra magistral, confluem os principais temas da humanidade, sob a ótica das mais diversas áreas (filosofia, psicologia, teologia, direito, etc.). Sua narrativa gira em torno de uma família russa de tipos bastante particulares que passa por uma série de problemas, e aqueles que se aventuram a lê-la certamente se reconhecerão em algum destes, caso consigam se lembrar de seus nomes (como o do personagem principal, “Alieksiéi Fiódorovitch Karamázov”).
Como em todo escrito de caráter universal, o livro está repleto de aforismos, e o poder deles sempre me impressionou. Isso porque sintetizam o universo em algumas poucas palavras, e por serem de pequeno calibre, penetram fácil e repentinamente a alma. Um para o qual chamo a atenção do leitor é o expresso por Dimitri Karamázov: “somos todos culpados de tudo”. A primeira reação diante dessa poderosa afirmação é a mesma de sempre que somos acusados de algo: procurar argumentos para a defesa. “Como assim? Todo mundo? Culpado por tudo? Mas eu não sou culpado por isso, nem por isso, nem isso … Como poderia?”. Mas se a segunda reação é a de uma abertura para essa possibilidade, veremos quanta verdade (“seremos capazes de suportar?” perguntaria Nietzsche) há nessas palavras.
Não que nosso autor tenha sido o primeiro a dizer algo nesse sentido. Como toda verdade, encontraremos outras ressonâncias dela sob outras autorias e em outros contextos. Um exemplo disso é o aforismo atribuído a Terêncio no século II a.C.: “Sou homem: nada do que é humano me é estranho”. Também encontra-se essa perspectiva no Meditações XVII, de John Donne, onde se diz a célebre frase “não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. Essa realidade de que cada parte é responsável pelo todo é cada vez mais reconhecida, mesmo na ciência, como se vê na Teoria da Complexidade de Edgar Morin e na Teoria Geral dos Campos de Ludwig von Bertalanffy. Se isso é um fato, tudo está conectado, toda perspectiva reducionista, que enxerga apenas as partes, mostra-se ineficaz para a apreensão de qualquer problema.
Em nossas discussões políticas contemporâneas, é muito comum a criação de bodes expiatórios. Liga-se um problema a um responsável e disso se conclui que eliminando o responsável se elimina o problema. Essa forma de pensar nos levou aos totalitarismos da modernidade e, se não nos livrarmos dela e aprendermos com a História, cairemos nos mesmos erros que mancham de sangue o século passado. Enquanto o problema da crise no Brasil for tal político, tal partido, tal empresa nada mudará; quando for um problema de todos nós , tudo mudará.
Ao reconhecer a responsabilidade de todos perante tudo o que acontece, evocamos nossa humanidade comum. Mais do que proporcionar o sentimento oceânico de que fala Freud, seremos tomados de uma compaixão universal que resolverá tudo diante dos nossos olhos. Basta que essa tomada de consciência atinja a todos no mesmo instante e chegaremos no mundo novo. Como diz, por fim, o personagem de Dostoiévski: “quando os homens compreenderem essa ideia chegará para eles o Reino dos Céus não mais em sonho, e sim em realidade.”