‘Restos de Nós’ tem dois públicos: quem entende e quem exercita a alteridade

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Restos de Nós, de Bia Onofre: um excelente exercício de alteridade em tempos de retrocesso e intolerância com a mulher

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“Restos de nós” (Chiado Editora, 2015)

Já assisti ao filme As Horas duas vezes. Li o livro de Michael Cunningham, que originou essa produção dirigida por Stephen Daldry, com Nicole Kidman no papel de Virginia Woolf. O resultado foi: nunca entendi exatamente o que está se passando ali.

Óbvio que compreendo a condução, a disposição das histórias e emissão de um determinado discurso. Porém, sempre me falta algo, me escapa algum componente que está implícito e é capaz de sintetizar o que ocorre no filme, e claro, no livro.

Ao ler Restos de Nós (2015), era essa sensação que me perseguia. Assim como nos exemplos acima, o livro de Bia Onofre me jogava na cara essa estrangeiridade em relação ao que se passava dentro da história, que conjuga uma série de situações envolvendo mulheres em diferentes temporalidades.

Alternando 1855 e 2005, conhecemos Maria Clara e Mariana. A primeira vive um casamento miserável (nunca foi consumado), além de ser assombrada pelo fato de ter levado sua mãe à morte no momento do parto – o que é relembrado algumas vezes durante a narrativa, e tem importância para o seu desfecho. Maria Clara só conhece algum tipo de esperança quando surge Thierry, e o resultado disso é uma gravidez vista primeiro como salvação, mas que logo se torna o pesadelo de sua existência.

Já Mariana, em 2005, atravessa uma crise no longo casamento com Rodrigo, o médico boa-pinta que atualmente contrasta com a silhueta flácida da nutricionista. Essa crise é só mais um dos vetores de uma insatisfação (depressão) profunda, a qual se soma do fato de não ter filhos, e a entrega de si mesma ao tempo, vagando dentro de uma rotina/corpo que agora lhe parece insustentável. Resolve mudar, começa a se exercitar e não demora muito conhece o guarda Alexandre – que irá se tornar uma espécie de objetivo platônico.

Acompanhamos suas vidas através de leitores dos diários de cada uma, que os encontram e abrem por diferentes e bem sacados motivos. Essas duas vozes narrativas criam uma eficaz dinâmica de escalas temporais, entrelaçando as histórias de Maria Clara e Mariana a partir de um parentesco ligado às sensibilidades – é a experiência no tempo que está em jogo.

Ao explicitar uma condição-mulher em sua historicidade, examinando experiências ligadas ao amor, ao desejo, a liberdade, Bia Onofre me coloca naquela posição que inicia esse texto: estrangeiro. Até posso entender o que está ali, na escrita, mas com certeza sou incapaz, como leitor-homem, de captar a plenitude daquele sentir que está emaranhado na trajetória de cada uma.

Restos de Nós pode até dialogar de forma mais direta com um determinado público, mas pode se tornar um excelente exercício de alteridade em tempos de retrocesso e intolerância com a mulher.

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