Pessoas são verdadeiros mundos que por vezes perscrutamos, tal como os livros, esses machados que perfuram as nossas geleiras interiores. As extensões dessas semelhanças aliciaram-me a escrever sobre tanto páginas deixadas comigo por pessoas que levaram consigo algumas das páginas que vivo. Deixo os rabiscos dos livros que respiram e sentem, pois são livros vivos – das pessoas.
“Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós. É nisso que eu creio.”
Franz Kafka
As ficções científicas de Júlio Verne, embora com um maior teor surrealista para o contexto histórico do século XIX, para uma criança envolvida pela ingenuidade da infância tornam-se aventuras excitantes cientificamente possíveis! Perder-se na ficção moderna de Verne não é tarefa difícil. Induz-nos a sentir em seus livros a tangibilidade do impossível. Nesse sentido, há aquela gente que parece ter viajado no tempo/espaço e trazido possibilidades insustentáveis nas condições históricas propostas.
Há gente que desperta o sentimento da utopia de Thomas More, para nos fazer caminhar quando ainda nos ensinam a engatinhar. Afinal, como bem apregoou Eduardo Galeano, é para isso que a utopia se impregna na gente, para nos arrancar da aceitação das possibilidades, posto que estas já foram impossibilidades de outrora. E do mesmo modo, ao ler Júlio Verne acreditamos, veementemente, no realismo das invenções dessas pessoas.
Tem gente semelhante ao Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, nos atendo à volúpia do conhecimento. Instigantes. Há um alargamento de percepção ao deparar-se com tais pessoas, lançando-nos nos estudos da filosofia. Logo nos vemos empreendendo uma perigosa travessia, onde nossas verdades parece estar perto, bem perto.
E também as envolvidas pelo romance de cavalaria, aquele de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha, indubitavelmente um romance paradigmático que aguça a sensibilidade à visão irônica que o romancista escreveu do mundo moderno, percebendo uma alegria detrás da visão melancólica; identificando uma crise de valores diante das repressões zombeteiras ao Dom Quixote, que nos mostrou questões universais e as matrizes da sensibilidade do pensamento humano.
Ou os que tornam-se nossos insetos kafkianos, ou mesmo nossas “Metamorfoses”, guiando-nos ao desvelamento de nossa própria condição de inseto, quando a sociedade perdeu-se no labirinto moderno da alienação. Ou quem sabe O Processo, simbolizando essa gente a expropriação de existência do homem moderno e a burocratização de nossas vidas, e, em alguns casos, expressando as farsas judiciais pelas quais o Direito Moderno se sustenta.
Gente angustiada patologicamente e detentora de uma sensibilidade mórbida, que parece carregar todos os infortúnios humanos, sendo uma mescla do trágico e do grotesco, da depravação e do desvio psicológico, levando-nos para os meandros humanos, como Os Irmãos Karamázov, que nos induz a meditação religiosa e ruminação filosófica.
E quem estacionou ou passou por nossa existência como um golpe destruidor do dualismo metafísico-religioso, rememorando os semelhantes efeitos de Assim falava Zaratustra. Experimentando com essas pessoas o pensamento extrapolando a consciência, inferindo que a subjetividade é aquilo que não é e nem pode ser comportada pelo consciente, exemplificando por nossa vida impulsional.
Há quem nos atormente, questionando o que não é mais questionável, e também o ainda não questionado. Há gente que nos assusta, alegra, alfineta, perturba, nos invade audaciosamente, chegando perto de nosso âmago, instaurando neste uma ideia, uma sensação e sentido novos como os livros, os mais apaixonantes, os mais atrevidos, que quebram nosso “mar de gelo”.