Brinquedos, roupas, fotos, músicas, cheiros.
Há várias maneiras de fazer com que as memórias da infância venham à tona. Basta que um desses itens apareça para que o cérebro seja invadido por uma torrente de imagens aparentemente esquecidas. É como vasculhar aquele quartinho da bagunça. Só tirando todas as coisas que estão lá empilhadas para se ter noção do que há de esquecido e remoto.
Não há período que carregue maior valor nostálgico. É o único momento em que não se acha que a grama do vizinho é mais verde. A meninice alheia nunca é melhor que a sua própria. Os gibis em formatinho, com papel tipo jornal, sempre serão melhores que os de hoje, feitos de papel couché. Naquela época havia o Intercine, que sempre trazia uma boa surpresa nas madrugadas. Era muito melhor jogar bola ou andar de bicicleta na rua do que ficar entretido com uma infinita variedade de jogos com gráficos mais realistas do que nunca. Os programas humorísticos eram muito melhores e mais criativos que os de hoje.
Mas talvez não há força motriz reativadora de lembranças maior que os lugares frequentados durante a pequenez. O ser humano tem essa coisa meio estranha de ter o cordão umbilical cortado no momento em que chega ao mundo para depois criar raízes no lugar onde mora. A rua da casa em que a família morou por muito tempo até ter que se mudar por conta do novo emprego arranjado pelo pai na filial da firma localizada numa cidade distante ainda trás à tona a lembrança de amigos que nunca mais foram vistos. A quadra da antiga escola foi reformulada, está coberta, mas ainda consegue reavivar aquelas tardes em que havia cinco times se revezando em disputas que terminavam com o selecionado que fizesse dois gols de vantagem. A praça da igreja, que teve a maior parte de suas árvores arrancadas, remete aos primeiros beijos escondidos e proibidos para tão pouca idade.
Essa ideia de ligação entre o indivíduo e o espaço em que viveu (ou vive) experiências simbólicas é muito bem retratada no excelente romance Mãos de Cavalo, de Daniel Galera. O narrador conta alternadamente a história de um mesmo personagem, mas em períodos diferentes de sua vida. Enquanto o Hermano adulto passeia a esmo pelas ruas onde viveu suas primeiras e mais traumáticas experiências de vida, o Hermano menino/adolescente leva seus tombos e passa por situações que o marcarão para sempre. E em todas essas ocasiões, os cenários onde tudo aconteceu é o que fazem o Hermano adulto refletir e tentar reparar o irreparável, reverter o irreversível. Galera ainda possui outro trunfo: ao contrário de autores já consagrados, ele não trata de literatura em seus romances, mas de ícones pop, como o filme Mad Max 2, histórias em quadrinhos de super-heróis e a banda Led Zeppelin, aproximando sua obra do leitor que teve uma infância tão saudosa quanto a de seu protagonista.
Alice, personagem do conto A caixa, pertencente ao livro Pó de Parede, de Carol Bensimon, tem sua infância marcada pela moderna estranheza arquitetônica da casa em que cresceu. Uma construção futurista com o formato de uma caixa que incomoda os vizinhos ao mesmo tempo que atrai a curiosidade de todos para saber o que há lá dentro, o que há dentro da cabeça de Alice, essa menina tão estranhamente especial? De alguma maneira, essa casa a acompanhará e estará em seu âmago até mesmo quando ela for para longe, passar um tempo na França e for obrigada a voltar por conta de uma tragédia que remete ao seu passado.
A infância, no fim das contas, talvez seja isso mesmo, algo inerente e colado, que está sempre dentro do ser humano para lembrá-lo do que ele realmente é feito.