Sobre como o escritor Ricardo Lísias escreve romances como O céu dos suicidas e Divórcio, em que é narrador e personagem.
Ricardo Lísias na verdade é um escultor. Usa como matéria-prima episódios da vida cotidiana (esmagadoramente comuns), que talha com as ferramentas de um estilo que reúne frases, expressões e ideias simplórias. O resultado são romances como O Céu dos Suicidas, monumentos abstratos em homenagem a duas fantásticas capacidades. A dele, de se dizer escritor, e a dos seus leitores, de acreditarem nisso.
Seu último livro, Divórcio, é uma coleção de vinhetas irrelevantes, amarradas pela descrição repetitiva do trauma de uma separação. Seria muito fácil aqui ironizar a vida pessoal de Lísias, levando em conta detalhes que expõe durante a narrativa, mas o caminho não é esse. Primeiro, porque já foi feito à exaustão. Depois, quem leva a sério traição e litígio, quando, atualmente, mais da metade dos casamentos termina em divórcio?

Longe de ser um fato ou evento extraordinário, a dissolução do sagrado vínculo matrimonial não tem nada demais. Pior ainda quando narrada em primeira pessoa por um sujeito autoindulgente que procura diminuir a ex-esposa, despejando na obra um expressivo número de xingamentos, só por não conseguir tocar a bola pra frente – o que acaba fazendo, aos poucos, com o auxílio da positividade do otário que teve sua carteira batida e se consola dizendo: “É a vida; tive culpa, mas vai ser melhor.”
Bem, se essa é a mensagem da história, o autor se equivoca. Paz, tranquilidade, sanidade, felicidade, bem-estar, autoestima, relações estáveis e ricas, são exceções. A humanidade precisa desses pontos ideais como orientação e sentido da existência, mas a consciência (racional ou irracional) de que esses estados plenos são inatingíveis sempre acompanha as pessoas. Diante do abismo, é mais consoladora a ideia de que o bem é uma questão de tempo e o mal, só uma vertigem passageira.
Enquanto Ricardo Lísias (o narrador) procura resolver seus dilemas pós-conjugais, discorre longa e tediosamente sobre suas origens familiares, mulheres que comeu, lugares que visitou. Por outro lado, quase sem intenção, descreve também sua transformação como atleta, pressionado pelas frustrantes demandas emocionais. Esses trechos são os melhores do livro:
“No final da corrida, porém, a sensação de força é maior que qualquer dor. Na verdade, acho que aquele estranho vigor toma conta do corpo inteiro com tanta intensidade que os incômodos desaparecem. No quilômetro final, não existe contusão.”
No geral, o escritor parece sempre querer afastar o protagonista dele mesmo: manda o sujeito viajar, interagir desnecessariamente com uma série de pessoas, frequentar ambientes cretinos. Até quando fala de si (quase o tempo inteiro), o narrador rola numa poça de acanhamento existencial: a pele que se foi, o pai que se foi, a mulher que se foi. O único lugar onde se confronta é nas curtas passagens em que corre, quando não pode fugir dele mesmo, quando o externo perde o sentido e ele trava a luta na pior arena possível: a interna.
Ao dirigir seus ataques externos e ingênuos, Lísias prefere esquecer que a maior parte da imprensa mundial é marrom, não só a brasileira. Que impor qualquer padrão moral a alguém é perder tempo. Que chorar por ex-mulheres é valorizar inutilmente um prefixo. Caso o autor deixasse de lado a piedade com que se trata e se concentrasse na dinâmica espiritual proporcionada pelo treinamento talvez o romance fosse mais interessante. Talvez.