Rô Mierling e a dolorosa arte de aceitar o Destino

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O Destino de uma personagem é tão inescapável?

Rô Mierling

A contracapa de Diário de uma escrava, de Rô Mierling, descreve com dados estatísticos o tema a ser tratado pela obra de ficção: No Brasil, todo ano, 250 mil pessoas somem sem deixar vestígios. Desse total, 40 mil são menores de idade, dos quais um terço são meninas destinadas a fins sexuais. Muitas escapam ou são encontradas, contando histórias terríveis; outras nunca mais são vistas com vida. Portanto, é um livro que se debruçará sobre assuntos graves, tendo que lidar com questões muito delicadas e que mexem com reações de asco quase instintivas do público leitor, como a pedofilia, a violência gratuita, o estupro, a escatologia e a dominação não só do corpo, mas também a quebra do espírito de pessoas vulneráveis.

Impossível tratar de tal assunto com condescendência e, mérito seja concedido à autora, ela não poupa o leitor de descrições detalhadas de violências, sevícias e humilhações. Desde o início até o fim, Diário de uma escrava destila fartas doses de maldade, com raros momentos de alívio da tensão. Cada página reserva um horror diferente, em uma escalada de proporções quase insuportáveis e, assim como Laura, a personagem e narradora de “Diário de uma escrava”, o leitor passa pelas fases de revolta, de aceitação relutante, de cumplicidade, de medo e, enfim, de uma felicidade que, apesar de não ser aquela ambicionada, é ao menos uma espécie de vida.

Ao final da obra, um apêndice destaca os casos reais usados pela autora para a construção da trama (curiosamente nenhum deles acontece no Brasil, o que demonstra uma deficiência nacional de informações sobre tais delitos), assim como um detalhamento dos fatos pinçados de cada caso para construir os personagens Estevão/Ogro e Laura, apresentando ainda uma lista de obras consultadas (novamente todas estrangeiras) e uma explicação rápida sobre a Síndrome de Estocolmo. Percebe-se, assim, que a escritora realizou uma pesquisa séria para construir uma trama calcada o mais próxima possível na realidade.

Uma das funções da literatura é servir de denúncia das mazelas humanas, entre as quais a exploração sexual de menores figura em posto destacado. No entanto, uma obra literária – por melhor que seja o seu propósito, por mais digna que seja a sua mensagem – é, no final das contas, uma obra artística, dotada de regras próprias e de apreciação distinta da sua intenção baseada na realidade. Mesmo as grandes obras que expuseram chagas sociais – e aqui podemos elencar “Germinal”, de Emile Zola, ou “Oliver Twist”, de Charles Dickens, para ficarmos em exemplos paradigmáticos – eram eminentemente obras literárias, deixando a denúncia em um segundo (mas não menos relevante) plano.

Antes de prosseguir, uma ressalva. Movido pela curiosidade, encontrei várias resenhas elogiosas sobre o livro, mas todas tratavam do tema, não do estilo da escritora Rô Mierling, o que não deixa de ser uma injustiça sobre o trabalho da autora, que merece ser lida pelo o que escreveu, não pelo assunto que escolheu tratar. Não é possível afastar a recepção dos outros leitores e resenhistas, afirmando que a leitura deles está errada, mas sim que a minha leitura é diferente, algo que inclusive alcança um novo espectro de análise para a obra. Por mais abjeto e assustador que seja o tema da exploração sexual de menores, essa resenha vai se manter limitada ao teor do livro, entendendo que a obra literária isoladamente considerada é que estabelece o seu estatuto de forma artística, não a intenção do escritor.

Nesse sentido, Diário de uma escrava ficou devendo no quesito literário. A começar pela equivocada escolha da estrutura: um diário é algo escrito em uma sequência temporal determinada, possuindo tanto a função de confessionário quanto de desabafo. Mais importante do que tudo, um diário não admite a quebra de narrador, passando para outra pessoa que não seja a sua responsável. No entanto, o livro começa escrito em uma sequência temporal baseada nos eventos ocorridos com a narradora e, a partir da metade, abandona a forma de diário e passa a sumarizar os eventos. Não deixa de ser interessante que, no início, quando a narradora Laura não podia escrever nada (estava presa em um buraco, sob constante vigilância de Estevão/Ogro), ela sabia o dia exato do tempo que estava sob cativeiro, mas, a partir do momento em que abandonou o buraco e passou a viver em uma casa, com chance de ver as mudanças do dia para a noite, tal noção de tempo sumiu. Pode-se perdoar algumas inverossimilhanças (se ela vivia em um buraco com luz artificial, como sabia quando era dia ou noite? Como ela escrevia o diário? Como mantinha registros tão acurados de alguns dias e tão incertos dos outros?), mas, como o livro se funda na credibilidade da denúncia formulada pela narradora, qualquer fator que traga desconfiança para a voz narrativa pode fazer com que o leitor questione a veracidade do descrito.

Quando abandona a forma de diário, passa a contar a história de outras violências sexuais perpetradas pelo personagem masculino agressor (e inclusive descreve o seu passado). A narradora Laura não tem como saber disso, e nem os pensamentos e vidas dos seus pais ou do namorado da adolescência, Mauro. É claro que a forma do romance permite este tipo de digressão entre narradores, podendo oscilar entre terceira e primeira pessoa, mas desde que o leitor saiba de antemão de tais movimentos narrativos, não precisando adivinhá-los ao calor da leitura. Nas derradeiras páginas, Laura anuncia que o diário chegou ao final: se era um diário até então, como a narradora sabia de outras vidas que não a sua? São detalhes narrativos que fazem diferença, e que colocam a história sob o império da inverossimilhança, a qual é o pior pecado que pode ser cometido por um escritor.

Os personagens estão excelentemente construídos, em especial a dupla que centraliza o conflito do romance, Laura e Estevão/Ogro. As suas atitudes são descritas com muitos detalhes, permitindo ao leitor a visualização das cenas quase como um filme. Talvez essa ênfase acabe levando a outro problema recorrente de “Diário de uma escrava”: o uso excessivo de clichês. Não serei tão rigoroso, permitindo certa liberdade para a narradora de se expressar através de clichês para mostrar a sua pouca idade e a dor das violências que sofre – às vezes, somente o clichê pode dar conta de uma situação narrativa -, mas a abundância acaba por dificultar a leitura. Não só clichês de palavras, mas os narrativos também deixam a história pairando sobre o abismo do descrédito. É um exemplo a cena em que Estevão/Ogro para o carro no posto de gasolina para comprar um refrigerante e ocorre de ser justamente o posto de propriedade de Mauro, namorado da narradora Laura (em outra quebra de verossimilhança, sabemos deste fato depois pela intromissão, no diário, de um narrador onisciente, que seria a voz própria da escritora Rô Mierling). A coincidência é grande demais para ser verossímil, e é o tipo de cena que faz um leitor mais atento colocar sob dúvida a narradora. O mesmo pode ser dito sobre a entrada surpreendente de um personagem nas páginas finais, o policial Daniel, que não diz ao que veio, pois surge, é construído e, em seguida, descartado – além de ser um típico policial atormentado de filme norte americano, pois usa drogas e bebida com frequência, briga com seus superiores e apela para a violência contra os criminosos, além de dirigir uma moto velha.

Ao final, a reviravolta na trama pega o leitor de surpresa, apesar de sua possibilidade ser ventilada desde o início. A narradora cede ao seu destino de forma completa, e é importante destacar a coragem de Rô Mierling na disposição de fazê-la descer ao mais tenebroso dos infernos – e decidir continuar nele. Existem autores que se apaixonam pelos protagonistas, mas não é o caso desse livro, em que a autora trata a personagem principal como parte de um destino cruel, para o qual não contribuiu em nada e, mesmo assim, precisa se submeter, ao estilo das mulheres das tragédias gregas.

Às vezes, o escritor possui uma intenção nobre ao contar a sua história, mas acaba indo um pouco além e tocando nas grandes questões humanas. Diário de uma escrava, de Rô Mierling, tinha como objetivo denunciar a exploração sexual de menores levada ao seu extremo, mas acabou tocando em um ponto que somente Nathaniel Hawthorne, no conto Wakefield, conseguiu abordar com a necessária dose de assombro e terror: a ideia de que basta um segundo de desatenção na vida, um passo para o lado, um grão de poeira na engrenagem, para que algumas pessoas saiam da grande máquina do mundo em que estavam inseridas e passem a viver à margem da sociedade.

Tão fácil se tornar o Grande Pária do Universo que preferimos ignorar esta possibilidade e achar que nossas escolhas de hoje não são tão importantes, que ainda temos o controle da nossa própria vida. Eis o medo maior que espreita por trás da desgraça de Laura: a impressão de que poderia acontecer conosco, e que o Destino é mais forte do que a nossa vontade. O mesmo Destino que se constrói aos poucos, um detalhe de cada vez, uma suspeita não verificada, uma pessoa que não devia estar ali, um olhar indiscreto flagrado no fulgor do dia. Somos joguetes do Destino, e não podemos sequer nos dar ao direito de invocar a nossa inocência para escapar das suas garras.

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