Haruki Murakami descreve o seu processo criativo e conta a sua história no livro Romancista como vocação
Para deixar claro, eu gosto do Haruki Murakami. É um escritor com estilo próprio e histórias originais. Originalidade é algo a ser elogiado em um mar, cada dia mais populoso, de escritores pasteurizados. Além de gostar do Murakami, eu gosto de escrever. Assim, foi com certa expectativa que comecei a ler o Romancista como vocação, o livro no qual ele descreve o seu processo criativo e conta a sua história. Um equivalente ao conhecido e cultuado Sobre a escrita, de Stephen King. A expectativa leva à decepção, dizem os budistas (na verdade, eles dizem que “a única forma de acabar com o sofrimento é matando o desejo”, mas eu faço uma interpretação livre).
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Ao final da leitura, fica um sentimento dúbio. Há diversas passagens ótimas, que serão descritas a seguir. Há, por outro lado, o incômodo com dois temas aos quais Murakami insistentemente retorna ao longo do texto: a defesa que faz de si mesmo às críticas negativas que recebe no Japão e as justificativas para o fato de não ser um escritor (muito) premiado.
O livro revela uma sociedade japonesa autocentrada e fechada em torno de alguns dogmas culturais. Suas livrarias, por exemplo, dividem as obras entre escritores homens e mulheres. Isso, no ocidente, somente seria admitido em alguma loja específica e como uma forma de posicionamento político. Do contrário, o dono seria acusado de sexismo. Murakami surgiu como um escritor outsider à prosa tradicional japonesa e continua sendo visto assim. Seus livros, consequentemente, sofreram e ainda sofrem resistência dos críticos e das editoras do país. Muito embora ele faça tudo para dizer o contrário, fica patente que isso o incomoda. Não sofre resistência, contudo, dos leitores. Isso, ao fim e ao cabo, é aquilo que realmente importa ao escritor.
Murakami se revela atento a pequenas simbologias. Alguém que estabelece correlação entre fatos aparentemente desconexos. Para quem já o leu, é interessante ver como isso se reflete nas suas obras. Ele descreve da seguinte forma, por exemplo, como decidiu, aos trinta anos de idade e dono de um bar, escrever o seu primeiro romance:
Certa tarde ensolarada de abril de 1978 fui ver um jogo de beisebol no Estádio Jingû. […] O som agradável do taco atingindo a bola ecoou em todo o estádio. Ouviram-se alguns atrasos. Nesse momento, pensei subitamente, sem nenhum contexto e sem nenhum fundamento: É, talvez eu também possa escrever romances.
Ao final da partida, saiu do estádio, comprou um caderno, caneta-tinteiro, sentou na sua cozinha e escreveu. E assim o fez em cada madrugada seguinte, depois que fechava o bar. Como nos demais livros de Murakami, por um motivo que passei a entender (e que abordarei mais adiante), este é cheio de frases aparentemente simples, mas cheias de significado, como esta: “É fácil falar que se deve ‘escrever o que sentir, o que vier à cabeça’, mas é difícil colocar essa ideia em prática”.
Ao terminar Ouça a canção do vento, não gostou do resultado. O que fazer? Apelou para o inusitado. Retirou uma velha máquina de escrever da estante e, com os seus conhecimentos limitados de inglês, reduzidos a um vocabulário escasso e a uma estrutura gramatical simples, reescreveu o primeiro capítulo na língua que não dominava. Não propriamente traduziu, mas sim converteu a história para uma estrutura mais direta, em sentenças curtas, retas e objetivas. Gostou do resultado e, depois, retraduziu para o japonês. Com isso, concluiu que “não havia necessidade de usar palavras difíceis nem belas expressões para emocionar as pessoas”. Naquele momento, descobriu o estilo que marca as suas obras e que conquistou milhões de leitores. Essa história, por si só, vale o livro. Mas há muito mais.
Ironicamente, a carreira de Murakami como escritor somente iniciou, verdadeiramente, com a concessão de um prêmio. Ganhou o de novos talentos da revista Gunzô, dedicada à literatura. Havia enviado para ela o romance e esquecido. Anunciado entre os finalistas, surgiu outra vez aquela tendência à simbologia desconexa.
Enquanto caminhávamos pelas ruas estreitas de Harajuku, o pombo ferido ficou tremendo levemente nas minhas mãos. Era um domingo muito agradável, e as árvores, os prédios e as vitrines das lojas resplandeciam à luz da primavera. Nessa hora sinto subitamente que eu ganharia o prêmio de novos talentos […].
Ao falar do processo e da rotina da sua escrita, Murakami revela o segredo da crueza e objetividade lapidares do seu texto. Ele passa, ao menos, por quatro revisões suas. A primeira escrita é livre, praticamente sem roteiro (a mais divertida, em sua opinião). Ao final dela, faz uma grande revisão para eliminar contradições dos personagens, que mudaram e adquiriram personalidade no correr da história e da cronologia. Na segunda revisão, acrescenta detalhes aos cenários e ajusta os diálogos. A terceira revisão é somente para correções. Então, entra na fase que chama de “cura”. Deixa o texto parado e o retoma depois de um bom tempo, à procura de detalhes que passaram despercebidos. O resultado? Um texto originalmente escrito de forma sintética e que é coado e filtrado, a fim de eliminar qualquer gordura e excesso.
Escritores se deliciarão com partes específicas, como aquela na qual Murakami conta o processo de modificação da sua narrativa em primeira para a terceira pessoa, a sua disciplina de produção e a estreita ligação que faz entre um corpo treinado e saudável e uma mente arguta. Já os leitores encontrão, em Romancista como vocação, dicas de diversos dos seus romances, como O Incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação — que considerava um romance inconcluso e passei a compreender melhor.
Para os verdadeiramente fãs, sugiro complementar a leitura de Romancista como vocação com a de Do que falo quando falo em corrida, no qual ele descreve como começou a praticar esportes rotineiramente e como isso mudou a sua vida.
Desconsiderado o tom de mágoa em alguns momentos, Romancista como vocação é um livro essencial para qualquer escritor e para qualquer leitor de Murakami, reconhecidamente um dos melhores autores da atualidade (embora ele próprio tenha algumas dúvidas disso).