Saco de pancada para remorsos: Gota d’água {preta}

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Saco de pancada para remorsos: Gota d’água {preta}

Na adaptação da peça Gota d’água (1975), personagens pretos dramatizam os dilemas do mito grego de Medeia.

Adaptação da tragédia grega

Uma obra de Chico Buarque de Holanda encenada nos palcos de um Brasil 2022 é algo muito necessário. Em especial, Gota d’água. Neste Gota d´água {preta}, o grupo dá cor e voz às personagens negras da peça escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes em 1975.

A peça de Chico e Paulo é inspirada no mito grego de Medeia, a feiticeira que é traída pelo companheiro Jason e busca uma forma de fazer vingança. Na adaptação, a Medeia é Joana, mulher preta e pobre, que mora na Vila do Meio-dia, conjunto habitacional de propriedade de Creonte. Jasão, marido de Joana, rompe com esta e inicia um noivado com Alma, filha de Creonte. O sogro consegue emplacar seu samba nas paradas de sucesso, e a música Gota d’água aponta para uma carreira de sambista em ascensão.

Gota d’água {preta}

Sob direção de Jé Oliveira, Gota d’água {preta} é a adaptação certeira da peça feita em 1975 para os dias de hoje e para uma certa prestação de contas sobre quem realmente são os personagens escritos por Chico Buarque.

Ao longo da história do teatro brasileiro, acompanhamos a ausência de artistas pretas, em especial na posição de protagonistas. Não só no teatro, como também na televisão e no cinema — indico o documentário “A negação do Brasil”, de Joel Zito Araújo para aprofundar mais o assunto. Na montagem atual, todo o elenco é preto, assim como é a maior parte dos pobres no Brasil. Com isso, a peça consegue não só discutir, mas traduzir e apontar pautas raciais além das discussões já propostas pelo texto, como a desigualdade social, a luta de classes e a propriedade privada.

Com um posicionamento bem feito, diálogos impecavelmente interpretados, música escolhida a dedo, a peça é sucesso de público. O elenco tem harmonia e ritmo em cena: se diverte e se faz presente, parece que de fato sente cada fala como uma dor sua. A atriz Aysha Nascimento abre lindamente o espetáculo dançando e preenchendo o palco, o que dá o tom de uma peça que traz como pano de fundo as religiões de matriz africanas.

Destaques da peça

Na adaptação, temos uma personagem lésbica, a vizinha Nenê, interpretada pela atriz Dani Nega. É um ponto que faz uma diferença relevante pela tentativa (e acerto) em atualizar e incluir personagens que, em geral, ficam (ficavam?) à margem dos clássicos teatrais.

A trilha sonora também se posiciona. Músicos e musicistas pretos e pretas, DJ tocando ao vivo, instrumentos, vozes e muito rap — uma marca do estilo teatral de Jé Oliveira.

E que delícia a voz da atriz Carlota Joaquina. Ela se doa, integra e se veste da personagem a ponto de parecer que Joana foi escrita para ela. Mestre Egeu ganha o tom certeiro na interpretação do grande ator Salloma Salomão. Em sua fala mansa, mas com firmeza, ele nos revela o homem sábio e experiente que seu personagem é, ao contrário de Creonte, interpretado por Rodrigo Mercadante, personagem que grita para se impor, fala com o corpo e se agita facilmente. Vê-se o quanto o ator se diverte enquanto interpreta tão bem essa figura.

Marina Esteves inicia a peça interpretando uma das vizinhas, ao lado de Corina (Aysha Nascimento) e Nené, nos surpreendendo ao entrar em cena em seguida como Alma. Tarefa difícil, mas desempenhada com distinção e criação minuciosa de personagem, em que se vê a diferença nos gestos, na forma de mexer a boca e olhar de cada uma.

Alguns outros destaques

Na peça, Jé Oliveira desempenha duplo papel: diretor e protagonista. Jasão cabe muito bem ao diretor, ele brinca, samba, interage com a plateia, canta e ri, como faz Jasão com a vida de Joana.

Em cena, microfones dão o tom não só das músicas, mas ressaltam falas. O elenco é distribuído como um meio círculo e as principais cenas são apresentadas, em geral, no centro. A mesa do DJ é um bar.

Merecem destaque as encenações de Mateus Sousa e Ícaro Rodrigues, interpretando respectivamente Amorim e Cacetão, a ala masculina da peça, amigos de Jasão. E a peça toda ganha um ar masculino, Jasão é recebido com algazarra pelos amigos, canta, samba e aprende até a gritar com o sogro, tão rico e poderoso.

Conclusão: uma pequena ressalva

Aqui, deixo um pequeno adendo: da forma como interpreto a peça, vejo Gota d’água como a história de Joana. Medeia traz no seu seio uma réstia da história matriarcal de tempos passados. Na montagem de Jé Oliveira, vi Joana mais à margem do que Jasão. Senti falta de uma encenação que desse conta da força da atriz e da personagem, tanto na sua primeira entrada em cena quanto em falas tão icônicas em que se pode perceber o ódio e a essência da personagem. Também senti falta de destaque para sua última cena com os filhos. Em nada essa percepção altera a qualidade da peça. Por outro lado, para mim, Gota d’água sempre foi uma peça sobre mulheres, enquanto Gota d’água {preta} tem uma força masculina forte em cena.

A peça agrada ao público, traz à tona assuntos que estão latentes em ano de eleição e que as pessoas estão sedentas para falar. Encontram-se representados nesta montagem: o dinheiro que não dá para o leite, a prestação da casa atrasada, a ameaça de despejo, o preconceito religioso, o racismo, a traição amorosa, enfim, as dores do cotidiano brasileiro. Um cheiro de remorso para quem não se imaginou servindo de saco de pancadas…

SERVIÇO

Gota d’água {preta} [com interpretação em Libras]
11, 12, 13, 14, 18, 19, 20 e 21 de agosto de 2022
quinta a sábado 20h
domingo 19h
[duração aproximada: 200 minutos]
Sala Itaú Cultural – 224 lugares

[classificação Indicativa: 14 anos]

São Paulo – SP

Créditos HL

Esse texto é de Poliana Pitteri para nossa coluna HL em Cena. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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