Sapiens consegue contar uma breve história da humanidade, como propõe?
Confesso que tenho restrições a livros com “breve”, “fácil”, “resumido” ou outros adjetivos expressos na capa. Afora casos terminais, em que você precisa adquirir noções imediatas acerca da alguma coisa de um dia para o outro, torço o nariz preconceituosamente. Há uma tendência de se simplificar temas complexos para adequá-los à paciência do público alvo, cada vez menor. Essa é uma receita quase certa para livros ruins.
Vi Sapiens multiplicar-se nas prateleiras das livrarias por onde passava. Ele não só se multiplicou, como continuou vindo em ondas de edições sucessivas. Tenho um fraco por livros de história. Peguei-o nas mãos uma ou duas vezes e avaliei a compra. Aquele título, contudo, impedia-me. O fato de ter virado um livro da moda, também. Eu sei… estou trabalhado os meus preconceitos.
No final, ouvi por acaso uma entrevista na qual o (então) presidente Obama falava longamente sobre o livro. A indicação despertou minha curiosidade e quebrou a minha resistência.
A navalha de corte foi afiada para resumir 70.000 anos de história em cerca de 460 páginas. O livro é divido em cinco partes. As quatro primeiras tratam de revoluções no nosso modo de viver e interagir. A última, “O animal que se tornou um Deus”, trata do presente e projeta o nosso futuro.
As oitenta páginas iniciais transcorrem de forma agradável. A escrita é leve, direta e objetiva. Há dados e informações interessantes, iniciando quando o homem era um animal indistinto na paisagem da terra até começar a se impor pelo intelecto. Nada que não se se tenha lido em diversos outros livros sobre o tema.
De forma sorrateira, a partir do final da primeira parte, Yuval Noah Harari passa a oferecer não só dados, mas também a analisar os motivos da nossa evolução e a tecer juízos críticos.
Se juntarmos as extinções em massa na Austrália e na América e acrescentarmos as extinções em menor escala que aconteceram enquanto o Homo sapiens se espalhava pela África e pela Ásia — tais com a extinção de todas as outras espécies humanas — e as que ocorreram quando os antigos caçadores-coletores povoaram ilhas remotas como Cuba, a conclusão inevitável é que a primeira onda de colonização dos sapiens foi um dos maiores e mais rápidos desastres ecológicos a acometer o reino animal. (página 82)
Não faltam a ele credenciais para isso. O israelense Yuval é Ph.D. pela Universidade de Oxford e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém. É especializado em história medieval e militar, e publicou diversos outros livros e artigos. Chama atenção o seu atual campo de pesquisa, a chamada “macro-história”. Ela busca a interligação com outros campos do conhecimento, como a biologia, por exemplo, mas não apenas isso. Busca a resposta de questões que são classicamente relacionadas à filosofia, como as definições de “justiça” e “felicidade” ou como essas foram influenciadas pelo desenrolar da história.
E por falar em filosofia, notadamente a partir do início da segunda parte, sobre a revolução agrícola, há um flerte aberto com ela. Yuval estabelece, por exemplo, considerações sobre as vantagens e desvantagens das formas de vida do homem agrícola e do caçador-coletor e qual deles teria sido mais “feliz”.
Essa história é uma fantasia. Não há indícios de que as pessoas tenham se tornado mais inteligentes com o tempo. “[…] Em vez de prenunciar uma nova era de tranquilidade, A Revolução Agrícola proporcionou aos agricultores uma vida em geral mais difícil e menos gratificante do que a dos caçadores-coletores. […] A Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade, mas alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou mais lazer. Em vez disso, se traduziram em explosões populacionais e elites favorecidas.”(página 89)
O livro poderia se perder nessa abordagem, muitas vezes, subjetiva. Mantém-se, contudo, firme no seu caminho. Há um salto de qualidade na leitura. O leitor é envolvido, de forma sutil, pela lenta mudança de um livro simples sobre dados e fato históricos para uma arguta análise sobre o homem e sobre a natureza humana.
Os argumentos e os juízos críticos são construídos com uma simplicidade elegante, lastreado nos dados que Yuval apresenta e, mesmo que não concordes com as conclusões, terás o prazer de uma leitura que te força à reflexão.
Na terceira parte, “A unificação da humanidade”, são analisados os fundamentos do mundo contemporâneo, como o dinheiro, considerada por ele o “único sistema de crenças criado por humanos que pode transpor praticamente qualquer abismo cultural e que não discrimina com base em religião, gênero, raça, idade ou orientação sexual” (página 193). Já “A revolução científica”, quarta parte, trata da explosão da nossa capacidade coletiva de criação e de problemas atuais. Em vários pontos, oferece uma perspectiva que nos permite ver um pouco além da frugalidade com a qual são habitualmente tratadas as questões que enfrentamos como sociedade.
A última parte do livro, “O animal que se tornou um Deus”, é um exercício de futurologia sobre os passos seguintes do Homo sapiens. Esse exercício acabou por ganhar uma obra própria, Homo Deus: Uma breve história do amanhã. A quantidade de erratas à primeira edição desse novo livro deixa claro que o sucesso de Sapiens acelerou o seu processo de elaboração.
Concluindo, tive que me render à qualidade do livro. Sapiens, além de ser uma leitura prazerosa, figura hoje como uma obra recomendada para quem busca entender um pouco melhor de onde vem, onde está e para onde vai.