Futhi Ntshingila, em sua obra Sem gentileza, apresenta uma narrativa de resistência, que tem como cenário os guetos da África do Sul em pleno apartheid
Na capa há a silhueta de uma mulher grávida, com as letras do título vazadas em seu corpo. Apurando um pouco o olhar, podemos arriscar que a figura retrata, na verdade, alguém bastante jovem – talvez uma garota cuja adolescência tenha sido interrompida pela gestação precoce.
Nesta primeira edição em língua portuguesa de Sem gentileza, pela editora Dublinense, a autora sul-africana Futhi Ntshingila nos traz uma narrativa de resistência, que tem como cenário os guetos da África do Sul em pleno apartheid. Mais informações de relevância podem ser notadas no objeto-livro, além da capa, ainda no campo que nos prepara para a história: com a foto da escritora acompanhada da minibiografia*, um trecho informa que sua literatura “é dedicada à preservação da memória de mulheres cujas trajetórias foram historicamente ignoradas”.
No título, Ntshingila faz referência ao poema Do not go gentle into that good night, de Dylan Thomas, um pungente clamor pela resistência de um pai à beira da morte. Bastam algumas páginas do livro para que seja possível entender o paralelo. Na trama, página a página acompanhamos em primeiro plano as adversidades por que passam Mvelo, então com 14 anos, e sua mãe Zola, numa batalha real pela sobrevivência. Na cidade de Durban, as duas encaram sem máscaras um contexto desumanizador, de pobreza e segregação. Zola, que há algum tempo enfrenta o vírus HIV, procura ainda manter-se de pé apesar do escasso auxílio do governo, da fraqueza física crescente e dos olhares nem sempre solidários, acompanhados de cochichos sobre “a doença das quatro letras”.
Figuras femininas em Sem gentileza
Futhi Ntshingila traz figuras femininas fortes, justamente nesses meandros dolorosos, em que ser assim, no fim das contas, é sua única opção de vida. A flutuabilidade dos papéis de mãe e filha é marcada pelo acúmulo de ações que visam ao bem-estar de ambas, à minimização do sofrimento ou ao mínimo acalento que a dureza dos dias exige. Mvelo canta. E, ao procurar saídas, é também nessa minúcia de delicadeza que sua mãe emprega a esperança de que um dia o talento da garota seja reconhecido, alçando-as a uma realidade digna em que a precariedade não firme bases.
Importante destacar, ainda, que tais mulheres não se reduzem à condição desfavorável retratada em grande parte do livro. Há, em suas trajetórias, orgulho, autonomia e intensos processos de entendimento sobre identidade e sobre as relações sociais. Nonceba, citada no fragmento abaixo e com vivências bastante diferentes das duas protagonistas, é também um ótimo exemplo disso:
Seus amigos riram dela e dos seus vestidos com estampas africanas, mas ela não se preocupava, porque Nonceba disse que não havia problema em ser diferente.
[…]
Inicialmente, foram as palavras de Nonceba que lhe deram força, mas logo sua própria voz interior começou a ganhar confiança. Começou a se olhar no espelho e perceber que jamais poderia ser como Nonceba. Era mais escura, seu cabelo mais encrespado, e seu nariz mais largo. Seus quadris e seus glúteos também estavam ganhando volume. Mas sua aparência não era mais motivo de repulsa para ela, como já havia sido. Agora, era motivo de curiosidade e entusiasmo (p. 69).
Além dos citados, há outros pontos da cultura sul-africana a receberem luz a partir da ficção: os testes de virgindade, os abusos sexuais, a americanização dos africanos como herança do colonialismo, a valorização de raízes e processos identitários.
Cada capítulo da obra cresce dinamizando a narrativa, que não é linear. Acompanhamos de início o funeral de Sipho, personagem masculino de importância no enredo, e a cada fragmento são abordados temas por meio de personagens diversos e seus dramas específicos. As idas e vindas não prejudicam a trama, que aos poucos forma um quebra-cabeças mais nítido e revela a comunicação temporal entre capítulos. A linguagem bastante direta utilizada pela autora também contribui para isso.
O romance traz pautas abrangentes e, quando se encerra, há um arremate rápido de um longo caminho de luta e resistências, embora, fora da narrativa, o desejo seja de que esses debates continuem e se expandam. A seguir, enfim, podemos ler mais um trecho da obra, de carga poética e simbólica tão forte quanto as personagens que dela fazem parte:
Ninguém chegou perto dela. Mesmo na igreja, o medo da feitiçaria era forte. Alguns jogaram o sal que mantinham por perto sobre ela, e outros pronunciaram o nome de Jesus para remover os espíritos malignos que supostamente estavam em Mvelo. Ela simplesmente enrolou-se com o cobertor, pegou seu vestido e sua calcinha, e caminhou até a saída, rumo à linda e perfumada noite de Durban. Caminhou em direção ao mar e, quando chegou à praia, sentou-se e escutou as ondas sussurrarem seus segredos a ela (p. 133).
*Futhi Ntshingila (1974) é jornalista e mestra em resolução de conflitos. Sem gentileza é seu segundo livro.