Conheça a trilogia Sereia de Vidro, do escritor brasileiro Marcelo Antinori
Autor de romances já traduzidos para o espanhol e inglês, Marcelo Antinori é economista de formação, porém, fez da literatura um meio de se comunicar com o mundo. O resultado, entre outros trabalhos, pode ser pode ser percebido nessas três obras que dialogam enquanto coleção: Sereia de vidro. Composta por três romances, o primeiro leva o nome da própria coleção, enquanto o segundo chama-se Os crimes do Dançarino da Sé, e o último é Mistério da festa da padroeira – todos lançados pela editora Bússola entre 2015 e 2016.
Mesmo que exista um formato de continuidade, pois os personagens são os mesmos, cada um dos livros possui uma trama distinta. Não necessariamente se comunicam, estão mais para desdobramentos, que auxiliam na formação de um quadro geral tanto para o contexto, como também para as personalidades envolvidas.
Aqui, para ficar mais claro [e ser mais justo com o próprio texto em sua concepção] vamos separar as publicações, começando por A sereia de vidro, de 2015. Aliás, é interessante salientar que esse título se dá por uma metáfora, claro, mas também como um elo de ligação que o leitor deverá ficar atento!
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Sereia de vidro
Chegou determinado momento de Sereia de Vidro em que eu sabia que estava perdido. Assim como o protagonista que, pouco a pouco, parece entrar num universo paralelo nos moldes de Paul Hackett em Depois de Horas, o leitor também se embaralha numa história que envolve cartas de Tarô num convento, crime organizado, sadomasoquismo e negociatas de construtoras com governos.
Em síntese: um cidadão, desses como eu, você e todo mundo, que trabalha com o sogro numa construtora, e que também se dedica à literatura, passa por um bloqueio criativo que o leva até um convento. Lá uma Madre joga Tarô, e será a partir desse momento que ele passa a viver dentro de um universo no qual não possui nenhum controle aparente, relacionando-se, também, com uma misteriosa mulher envolvida com o crime e com práticas sexuais [no mínimo] inusitadas.
Calma. Tudo se encaixa.
Com um ritmo ágil, narrado em primeira pessoa, e com um texto limpo baseado em descrições que se preocupam em encadear a narrativa num determinado contexto muito mais do que aprofundar os personagens, o trabalho de Marcelo Antinori ganha pontos quando nunca subestima o leitor. O texto propõe o nosso entendimento sobre os personagens que circulam na trama, nunca explicita, cabendo a cada um de nós perceber os perfis que estão em jogo e movimentam esse cenário caótico que se estabelece na vida do nosso protagonista sem nome.
E esse exercício é feito rapidamente, já que seu trabalho logo alcança identificação com o leitor. O que ocorre pela familiaridade do tema, algo que estamos, por mais incrível que possa parecer, habituados a ver.
E daí um último ponto importante a ser explorado, e que diz respeito a esse submundo paralelo no qual o protagonista passa a conhecer: ele sempre existiu, somente ele que nunca olhou para o lado. E talvez aí esteja a maior surpresa do livro quando ele chega ao final, que está mais no plano da sensação do leitor, quando esse se depara uma retrospectiva tão absurda quando absolutamente possível.
Os crimes do dançarino da Sé
Se no primeiro livro da série havia a entrada num universo obscuro, quase paralelo em relação à vida do protagonista, dessa vez o autor Marcelo Antinori escancara essa perspectiva. Para ser ter uma vaga ideia, o Chapeleiro Maluco de Alice no País das Maravilhas surge em uma história envolvendo corpos que são despejados na cidade com requintes de crueldade, e uma pitada de romance policial.
Ana Pérsia, a dominatrix e protagonista feminina desde o livro anterior, agora se envolve na busca pelo assassino que passa a ser conhecido pelo nome que dá título ao livro, da mesma forma que aprofunda seu caráter nesse submundo, que agora é governado por Coutinho. É interessante como ela é moldada no contraste, ou mesmo no campo da sugestão, e embarcamos sem problemas [devido ao suspense que exerce] na sua trajetória errante.
Outra personagem feminina interessante que surge é Carmen, que na verdade trata-se de uma travesti, e junto com ela Luciana – a esposa do protagonista – ensaia um destaque na trama que, infelizmente, não se concretiza. Ao trair o marido em uma viagem, ela precisa lidar com o amante, um francês que a persegue e cria uma série de situações que irão se cruzar com o arco central dos assassinatos. Infelizmente Luciana acaba abandonada pelo autor no decorrer da história, quando era uma excelente personagem a ser explorada.
De forma geral, esse trabalho está bem mais próximo do romance policial, ou mesmo o suspense, do que de um drama psicológico – como parece ser o caso do primeiro livro dessa trilogia.
Mistério na festa da padroeira
Nesse terceiro, e último, livro da série Sereia de vidro, se confirma uma tendência: a presença de Luciana. A esposa do protagonista aos poucos conquista o leitor por uma ingenuidade estranha, no limite da desfaçatez, e passa a ocupar um lugar de direito.
Ela é contratada por Coutinho, o chefe do tráfico, para organizar a festa da padroeira do Bixiga, e sua história começa a dominar a narrativa na medida em que sua personagem ganha contornos que vão além da esposa ou amantes do francês – caso do livro anterior dessa coleção. Vez ou outra ficava com a nítida sensação de que ela sabia exatamente com quem estava lidando, e que não passava de encenação o caráter gaiato de sua composição, ao mesmo tempo em que, bastavam mais algumas páginas, para voltar atrás e pensar nela como uma mulher envolvida dentro de uma engrenagem que lhe é [sempre foi, e continuará sendo] alheia.
Claro que o submundo tem vez, o universo paralelo ainda pulsa na trama de Antinori, mas ele parece se dissipar – ou ganhar um caráter humanizado – com a presença de Luciana. Três parágrafos e ainda estou falando dela…
Mas a história se preocupa no fator policial, em ser uma trama de suspense em que algumas peças do tabuleiro devem ser preservadas até as últimas páginas, sendo que dessa vez Ana Pérsia, a travesti Carmen, o protagonista sem nome e mais algumas figuras, estão as voltas com o assassinato de travestis que, ao que parece, foi praticado por um dos integrantes de um grupo chamado Novos Gregos – um nome que de tão manjado na metáfora que propõe incomoda um pouco.
Detalhe, Antinori, assim como no livro anterior, opta por não aprofundar a investigação em si, colocando seus personagens no meio de uma situação e, assim como eles, o leitor precisa tatear cada situação superficialmente. O resultado não chega a ser ruim, porém fica claro o potencial que estava ali, pronto para ser explorado em cada esquina desse universo para que somos levados.