Seria possível uma história não-linear da literatura?

Para o crítico e poeta Haroldo de Campos, existe uma história constelar, portanto, não-linear, aberta e não conclusiva da literatura brasileira.

Haroldo de Campos, o poeta polêmico por excelência

Um outro modelo para nossa história literária

A organização das formas e tendências da literatura brasileira é uma questão central para nós há muito tempo. O método que se tornou hegemônico entre os estudiosos foi proposto por Antônio Candido em 1956, nos dois volumes de “A formação da literatura brasileira”. 

A obra fomentou seguidores e críticas não menos importantes que enriqueceram a discussão em torno de um modelo para nossa história da literatura.

Entre elas, a proposta de Haroldo de Campos está entre as mais relevantes, presente no livro “Sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos” (1989).

Para Campos, a proposta de Antônio Candido segue um “modelo linear”, que coloca à margem do sistema literário brasileiro o poeta Gregório de Matos e ainda classifica o movimento barroco como uma “manifestação literária”. O teórico descreve, então, uma abordagem desconstrutivista, ousada e inovadora para nossa historiografia literária. 

A proposta do “modelo linear”

Antônio Candido distingue as “manifestações literárias” da “literatura propriamente dita”, um sistema de obras ligadas por denominadores comuns: uso da mesma língua, dos mesmos temas, imagens, elementos da natureza social e psíquica. 

Para o teórico, as “manifestações” predominavam até o terceiro século da colonização brasileira. A partir daí, os denominadores comuns podem ser identificados dentro de um sistema triádico, formado por um conjunto de produtores literários, receptores e um mecanismo transmissor (uma linguagem traduzida em estilo).

Produtores, receptores e um mecanismo transmissor: para Candido, esses três elementos formam um tipo de comunicação inter-humana, a literatura. Desse sistema, nasceria o que conhecemos como tradição: uma espécie de corredores que passam a tocha de mãos em mãos.

Qualquer obra que não se insere no sistema triádico é, para Candido, “manifestação literária”, e não uma “literatura propriamente dita”. Na sua perspectiva histórica, a formação do sistema literário brasileiro teve início em 1750.

Ele ainda cita algumas “manifestações” que ficam de fora do sistema proposto, como a obra do Padre Antônio Vieira e, o mais polêmico de todos, Gregório de Matos.

A crítica de Haroldo de Campos

A resposta de Haroldo de Campos, em “O Sequestro do Barroco”, foi uma das mais significativas para o sistema-método proposto por Antônio Candido. A ausência do poeta barroco dentro do sistema triádico é, para Haroldo de Campos, um paradoxo. 

Se as obras fora do sistema literário não influenciam as gerações seguintes, como explicar o fato de que Oswald de Andrade elegeu Gregório de Matos, no ensaio “A sátira na literatura brasileira”, como o poeta cuja obra “indica desde então os rumos da literatura nacional”?

Para Campos, a aparente contradição não coloca em jogo apenas a questão da “existência” do poeta barroco, mas também, e principalmente, a própria noção de “história” que alimenta a perspectiva segundo a qual essa existência é negada.

Tal noção, para Campos, segue um modelo ideológico de história que privilegia uma evolução baseada na construção de uma identidade nacional. É um modelo que nasceu com o romantismo brasileiro, de forte caráter nacionalista e classicista.

A exclusão do Barroco do modelo linear proposto por Cândido não é, para Haroldo de Campos, simplesmente fruto da separação entre “manifestações literárias” e a “literatura propriamente dita”. 

Na sua perspectiva, a paradoxal “inexistência” de Gregório de Matos se dá pelo modelo ideológico ao qual está vinculado o sistema proposto por Cândido, que privilegia obras integradas ao projeto literário do romantismo brasileiro, enraizado no ideal de construção da identidade nacional.

Nesse projeto literário, não caberia o Barroco, cuja estética está mais preocupada com as questões autorreflexivas do texto do que com a construção da identidade da nação.

Por uma história constelar da literatura

Haroldo de Campos descreve a sua alternativa ao modelo linear da historiografia literária brasileira como uma “história constelar”. Nesse modelo de organização, os poetas escolhidos teriam em comum o fato de terem contribuído para a renovação de formas em nossa poesia.

Comparada ao modelo de Candido, a história constelar do Haroldo de Campos dá mais ênfase ao caráter estético criativo das obras, e não ao fato de que elas podem ser inseridas dentro de um sistema, uma estrutura ampla de linhagem ideológica.

“Poderemos imaginar assim, alternativamente, uma história literária como menos formação do que como transformação. Menos como processo conclusivo, do que como processo em aberto.”

No modelo de Haroldo de Campos, a história da literatura serviria para revelar momentos de ruptura. A tradição seria menos uma espécie de transmissão de tochas entre corredores e mais como uma dialética entre o padrão e a transgressão.

É evidente que, se o modelo linear de história da literatura é visto por Campos como ideológico, a sua proposta, baseada na busca pelos verdadeiros momentos que merecem ser registrados, também é ideológica a seu modo. 

A resposta de Campos revela o “sequestro” que passou a obra de um poeta publicado, lido e reverenciado por gerações posteriores, mas que teve a sua “inexistência confirmada” no sistema literário do país onde atuou.

No mínimo, a perspectiva de uma “história constelar” nos mostra uma alternativa de modelo ao fenômeno complexo que é a escrita feita em nossas terras.

Referências

CAMPOS, Haroldo de. O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos. São Paulo: Iluminuaras, 2011.

Raphael Alves
Graduado em Letras-bacharelado. Escreve por trabalho e diversão. A curiosidade um dia o matará; enquanto isso, escreve sobre a agonia e o prazer das últimas descobertas.
Raphael Alves
Graduado em Letras-bacharelado. Escreve por trabalho e diversão. A curiosidade um dia o matará; enquanto isso, escreve sobre a agonia e o prazer das últimas descobertas.
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