Na série ‘Postais’, um autor envia um cartão a um outro autor, cuja imagem este terá de se inspirar para a escrita de um conto. ‘O sequestro de Ana Hickmann’, de Tiago Germano, foi baseado na fotografia de Claudia Nina.
O sequestro de Ana Hickmann
Curitiba, 23 de julho de 2013. A capital paranaense amanhece sob um denso manto de neve. O milagre é registrado pelas câmeras da população atônita, que acorre às calçadas para construir bonequinhos de gelo e escrever frases de duplo sentido nos pára-brisas dos carros. Enquanto a imprensa local se mobiliza para noticiar um fenômeno que não ocorre na cidade há exatos 38 anos, um fato não menos insólito preocupa a Secretaria Municipal do Meio Ambiente. Ana Hickmann, um filhote de lhama de pouco mais de um ano de vida, acaba de desaparecer das dependências do zoológico. A fêmea, um autêntico exemplar da espécie Lama glama, foi concebida em cativeiro e teve seu nome escolhido em uma promoção entre as mais de 150 identidades sugeridas pelos frequentadores do zoológico. A última testemunha a ter uma pista do paradeiro do animal é o chefe da equipe de tratadores, um servidor que trabalha no espaço desde a sua fundação. Encoberto pelas autoridades, o incidente só chega ao conhecimento público dois anos depois dos misteriosos acontecimentos aqui narrados. Um grupo de quatro amigos revela a autoria do suposto sequestro de Ana Hickmann, em uma mensagem encaminhada em caráter sigiloso à reportagem, via correio eletrônico. A imagem anexada como prova do sequestro mostra Ana Hickmann passeando pelos subúrbios de Curitiba. A data e o horário da foto coincidem com aquela manhã em que a paisagem se alterou e os termômetros da metrópole chegaram a marcar -1°C. Poucas pessoas estranharam a visão de Ana Hickmann caminhando placidamente pelas ruas cobertas de neve. A lhama reapareceu no zoológico no dia seguinte ao sumiço, com um nítido decréscimo no volume de pêlo e em aparente estado de euforia. Não havia ferimentos detectáveis. Os relatos a seguir baseiam-se nos depoimentos informais do então funcionário do zoológico e dos quatro amigos envolvidos no rapto do mamífero ruminante. Eles concordaram em romper o silêncio após a revelação tardia do caso. Todos os nomes empregados a seguir são fictícios. As histórias, porém, como tudo o mais que os curitibanos presenciaram naquele atípico dia de inverno, são reais. Bizarramente reais.
TAMANDARÉ, funcionário do zoológico, hoje aposentado
Todo mundo se atrasou um bocado naquela manhã por causa da neve. Sabe como é: transporte público aqui é o melhor do mundo, mas ninguém ia imaginar que ia ter que botar corrente no pneu pro ônibus rodar. Depois que cheguei, cumpri minha rotina igualzinho. Aqueles bichos eram como filhos pra mim, conhecia todos pelo nome. Eu tinha acabado de agasalhar o Bob, o chimpanzé idoso que andava meio gripado. Foi aí que vi o Calvin, o Valentino e o Paco fora da área das lhamas. Não sei como é agora, mas na época em que eu trabalhava botavam nome de estilista nos machos e de artista nas fêmeas. Enxotei os três de volta pra dentro, fechei a cerca e fiz uma contagem. Faltava a Ana Hickmann. Comuniquei imediatamente a administração. Não sei se avisaram a polícia. A gente até tentou consultar o circuito interno, mas tinha neve acumulada nas câmeras e nenhuma funcionava direito. Quando a Ana Hickmann apareceu sã e salva no outro dia foi um alívio. O que até hoje eu não entendo é por que fizeram toda aquela maldade pra cortar só metade do pêlo da pobrezinha. Demorou o inverno inteiro pra crescer de novo. Coitada. Passou um frio.
SÉRGIO, mentor intelectual do sequestro
Era véspera do aniversário de alguém. O Marcos tinha surtado e destruído a última escultura, que a gente levou uma hora inteira fazendo. Ele golpeava o topo com a garrafa de vodca, gritando que o Paraná era a Rússia brasileira e que a gente era um bando de viadinhos brincando na neve. A gente ficou se provocando e essa é a última coisa que eu consigo me lembrar com lucidez daquela manhã. Quando eu acordei no outro dia, a primeira coisa que eu me perguntei foi se criavam lhamas na Rússia. Porque lá estava eu estirado no chão do parque, com as costas coladas na grama e aquele bicho lambendo a minha orelha. O Marcos tava catando um resto de neve pra botar no olho roxo. Deus sabe onde o Rafael e o Maurício tinham se enfiado. O carro tinha um amassão na traseira e a mala tava entreaberta. Supus que a gente tinha atropelado a lhama manobrando mas, fora metade do pêlo raspado, não tinha nada de errado com ela. Fui ajudar o Marcos. O cara não falava coisa com coisa e não soube me explicar a origem do olho roxo. Muito menos da lhama. Aí o Rafael apareceu com o Maurício amarrado numa corda. A situação só ia piorando. O Maurício amarrado numa corda, com aquele casaco cheio de pêlo de lhama colado, parecia um poodle sendo levado pra passear pelo dono. Ninguém soube dizer o que tava acontecendo. O Rafael, que tava dirigindo e o que menos bebia da gente, disse que apagou dentro do carro e que quando foi buscar um cobertor achou a lhama dormindo no porta-malas. A partir daí tudo foi voltando em flashes. Queriam amarrar a lhama e deixar que o Marcos se vingasse. Fui eu que convenci todo mundo de que a gente tinha que devolvê-la ao zoológico.
MARCOS, acusado por tentativa de homicídio
O que quer que o Sérgio falado é mentira. Hoje eu tenho uma reputação a zelar e não vou ficar remoendo o passado. Ele foi o culpado de tudo, desde o começo. Ele sempre foi o cara das ideias. Ele sempre foi metido a líder do grupo.
RAFAEL, cúmplice
Do que eu me lembro o Marcos chegou a pensar em matar sim. Já tentou colocar uma lhama de volta no porta-malas de um carro? Ele tinha até levado um coice tentando. Eu sinceramente não sei como a gente conseguiu fazer aquilo bêbado, mas repetir aquilo sóbrio foi muito mais difícil. Laçar até que foi a parte simples, porque eu já tinha treinado com o Maurício antes na mata. Imobilizá-la é que foi complicado. Não era à toa que a lhama se chamava Ana Hickmann. O bicho tinha as pernas muito longas e era chata pra caramba. Espirrou muco na cara de todo mundo. Lhamas são animais facilmente irritáveis. Mas ela se afeiçoou do Maurício depois. Vai ver que foi aquela história tosca do casaco.
MAURÍCIO, cúmplice
Você descobre o frio quando cogita jogar água quente no vaso saninário antes de sentar. Eu venho de Brasília e lá acontece muita coisa estranha, mas nevar mesmo nunca nevou. O Rafael tinha me emprestado um sobretudo mas aquilo não era nem um pelomenos, quanto mais um sobretudo. Aí você imagina eu voltando do banheiro do parque naquele frio, bêbado, com um animal daqueles cheio de lã na minha frente. Claro que eu fiz o que tinha que fazer. Eles hoje me ridicularizam mas se não fosse eu entrar de volta no zoológico, montado na lhama, a gente poderia estar em sérios apuros agora. Guardo boas recordações daquele dia. A foto é uma delas. Acho que agora a gente pode finalmente rir disso tudo.
Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente não quis se pronunciar. A polícia alega não ter conhecimento do caso e não ter sido notificada pela administração do zoológico. A única ocorrência registrada próximo ao local do sequestro foi a aparição de uma série de estátuas de gelo em formato fálico, uma delas completamente destruída, às margens da via de acesso ao Parque do Iguaçu.
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Tiago Germano é paraibano e mora atualmente em Porto Alegre, onde é mestrando em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Seu primeiro romance, ainda inédito, acaba de ser finalista do Prêmio Sesc de Literatura. Ano passado, um conto seu foi finalista do Prêmio Off-Flip. Um escritor que quase chegou lá em finais e, obviamente, torce pelo Club de Regatas Vasco da Gama.