Série Postais – A partida // Remetente: Sergio Leo, Destinatário: Claudia Nina

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Na série ‘Postais’, um autor envia um cartão a um outro autor, cuja imagem este terá de se inspirar para a escrita de um conto. ‘A partida’, de Claudia Nina, foi baseado na fotografia de Sergio Leo.

Postais Leo

 

A partida

 

Demoraria a entender por que todos saíam na mesma direção. Temiam a chuva próxima e talvez por isso tenham escalonado guarda-chuvas, embora o tempo ainda estivesse bom. Fiquei parada, esperando que o sol também ficasse parado onde estava – errado eram eles, pensei, os que fugiam, os que aguardavam a chuva.

De repente, o bando começou a se multiplicar – a minha sensação era a de que, na mesma proporção, eu me dividia em minúsculas pessoas deixadas para trás. Eles, os que fugiam, eram ursos; eu me formigava. Estranho que ninguém me dizia nada; não, não era estranho: não diziam nada porque não me viam, já que me deram as costas. Primeiro, porque eu deveria mesmo estar minúscula, segundo porque estavam concentrados demais na partida. Eu apenas movimentava meus olhos na direção de quem saía para tentar entender a pergunta: por que saíam e por que eu ficava?

Resolvi me aproximar ainda mais da porta de saída para ver o que de imediato estaria precipitando a partida. Até segundo atrás, estavam todos quietos e sem anúncio prévio de que sairiam. Fiquei na soleira sem que nada de mim estivesse do lado de fora, além dos olhos bem esticados: eu não sabia o que tinha do lado da lá nem o que buscavam. Espreitei: vi ao fundo do cenário uma floresta de árvores muito altas,  lembrou-me paisagens distantes e frias. Não conseguia compreender o plano das árvores em chamar a multidão.

Aos poucos, o cenário se transformava, e as árvores cresciam, pareciam gigantescas. Eu me sentia ameaçada em minha minúscula condição de formiga, e por isso tirei os olhos de fora. O grupo seguia.

Até o momento em que uma pessoa se virou para trás e talvez tenha me visto – será? Fiquei com medo. A pessoa era uma moça que, embora caminhasse na direção das árvores, parecia me ver e me chamar com o olhar: venha também, dizia.

Eu?

Fiquei onde estava porque, na condição de formiga, não tinha fôlego para caminhar como ursos. E, sinceramente, não tinha vontade de sair do sol e entrar na floresta distante; o que me prometeriam as árvores ao fundo?

Percebi que as pessoas carregavam matulas, bolsas, mochilas, quase bagagens rápidas, como se a necessidade da partida fosse uma urgência recente, Aquilo me pareceu ainda mais misterioso. Se eu permanecesse onde estava, correria algum risco? Não seria melhor também partir? O mais estranho era que as pessoas não corriam, agiam com vagar.

A chuva desabou, enfim. O bando não se apressou, pois todos estavam preparados para a água. E assim foram, um por um, ao encontro da floresta ao fundo – mergulhavam lá dentro e aos poucos desapareciam.

Eu fiquei e, à medida que os ursos sumiam, curiosamente, me sentia maior – meu tamanho formiga virava lembrança; eu podia ver meus pés de sempre, minhas mãos, eu inteira no formato antes da transformação. A chuva não respingava para onde eu estava – lá dentro, ainda tinha sol. Lá fora, a tempestade parecia sugar com força a multidão.

Cheguei à conclusão de que os errados eram eles – os que partiam, os que pensavam na chuva antes dos primeiros pingos. Eu não. Antes de me achar covarde por ter ficado, subitamente me acreditei. E pensei: certa fui eu em ficar.

Ao fundo, o cenário das árvores altas e distantes era só isto: árvores altas e distantes. As pessoas, os ursos, não deram mais sinal de vida – nem de morte.

 

***

 

Claudia Nina é carioca, jornalista, doutora em Letras pela Universidade de Utrecht, na Holanda. Em 2014, lançou o romance Paisagem de porcelana, pela Rocco. É ainda autora de A palavra usurpada, sobre a obra de Clarice Lispector (Editora da PUC-RS); do ensaio A literatura nos jornais (Summus); do infantil Nina e a lamparina (DSOP); do perfil biográfico ABC de José Cândido de Carvalho (José Olympio); do romance Esquecer-te de mim (Babel); e do livro de resenhas publicadas na revista Pessoa Delicados Abismos (Oito e Meio). Assina uma coluna sobre livros na revista Seleções (Reader’s Digest).

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