O conto abaixo integra a série Quatro estações, uma parceria com o Jornal Opção, em que dois autores escrevem uma breve narrativa inspirada numa estação do ano. Na próxima semana, Inverno, de Carlos Henrique Schroeder e Mario Araujo.
Outono
Assim que abre a porta do teatro e se depara com o palco, o ator sente a pungência de uma desolação, tocando-o como a dor refletida de um ferimento mais interior. As folhas secas recortadas de papel crepom espalhadas pelo chão, penduradas nas cortinas da cenografia com tiras de durex aparentes, foram a primeira coisa na qual deteve seu olhar e parecem ser as desencadeadoras de seu abatimento. Entretanto, ele sabe que a sensação de tudo em si próprio estar ressecado e prestes a desabar vem de muito antes: pronunciava-se já no gesto da mão que abaixou a maçaneta da entrada sem a antiga convicção da própria solenidade enquanto ator experiente, estava latente há dias, meses, anos. A precariedade da arte diante dele é a mesma de uma vida inteira.
Enquanto caminha pelo corredor escuro em direção ao palco, ele sente o dissabor rebatido de cada uma das poltronas vazias, cujo abandono, pode prever, não será muito menor nas noites de apresentação. Nem mesmo os garotos e as garotas mais jovens do elenco, que num suspiro coletivo parecendo ensaiado suspendem os movimentos e mal contêm sua alegria primaveril ao vê-lo chegar, conseguem dissuadi-lo desse desconforto. A proximidade definitiva do palco e a recepção calorosa da companhia deveriam levantar seu moral, retornando-o àquela sensação de ser uma celebridade em algum grau, mas as imitações de folhas secas – agora vistas de perto e notavelmente mais toscas – impõem a consciência inevitável da nulidade de suas conquistas ou notoriedade, as quais nunca bastaram para alcançar algo além dessa cenografia similar a de peças amadoras montadas em escolas primárias. Talvez não fosse apenas ele a vítima dessa queda outonal, mas também isso tudo a que sempre deu o nome sacralizado de: arte do teatro.
Sozinho no camarim, troca-se estranhando o local ao seu redor como se a consciência de seu corpo no ambiente – ferramenta básica de todo ator – tivesse sofrido uma fratura imperceptível. Observa as roupas nas araras, as plumas e as penas, as coroas e outros adereços, e refaz sua carreira: tantos personagens, tantas caracterizações alheias, tudo suspenso no tempo, deslocado no espaço. O ator senta-se na cadeira e as luzes que contornam o espelho iluminam seu reflexo já vestido com a velha camiseta branca e a calça de moletom própria de ensaios. Vislumbra a imagem à frente, procurando em seu rosto um mapa de seus erros e acertos, já cometidos ou ainda possíveis. E, enquanto perscruta os vincos (ou suas sombras cavadas pelas lâmpadas) que parecem mais profundos em volta dos lábios e aos cantos dos olhos, cuja falta de viço ou brilho os tornara pálidos como a barba esbranquiçada que desponta no maxilar, é surpreendido por toques delicados à porta, que deixa entrever uma assistente perguntando se ele está pronto. Sem desviar o olhar de seu reflexo, responde que sim, muito embora necessitasse ainda de uma maquiagem impossível de ser desenhada naquele rosto, manchado não somente pelas oxidações do espelho, mas, sobretudo, pela própria inconsistência e inevitavelmente pela vida.
Tentando se desfazer desses pensamentos, o ator sai do camarim e, antes de subir no palco, cumprimenta o diretor da peça, cujo entusiasmo demonstrado lhe parece estranho. Por consideração, responde estar pronto e satisfeito com aquela montagem surpreendente, o pastiche que traz outra leitura à velha peça inglesa. No entanto, quando adentra o palco, a sensação de plenitude espiritual e de ter sua existência justificada – que sempre o banharam nesse espaço como o sol de um verão íntimo disparado pelos holofotes – já não o tocam. Esses sentimentos de satisfação (os quais sempre foram a nota de fundo de uma promessa particular, calcada em um reconhecimento maior por vir) agora estão substituídos pela exasperação que não o deixa. A luz lhe incomoda e, mesmo que insista em não entender, o palco também se fende numa fratura imperceptível mas sensível, revelando o desfecho do arco que tem sustentado seu drama: a promessa não se cumpriu e não se cumprirá.
Ele deriva nesse desnorteio e somente quando percebe a perplexidade calada do elenco se dá conta de que não respondeu à deixa de sua entrada. Após o pedido do diretor para recomeçarem, feito com uma gentileza indulgente que lhe irrita, ele respira fundo procurando recobrar a altivez de performances passadas. Retorna à coxia e, ao sinal, surge no momento exato, fazendo parecer espontâneo o movimento ensaiado até a exaustão, apresentado em inúmeras ocasiões. Ele outra vez um bardo, outra vez um parvo, ele outra vez um outro, ainda e sempre distante de seu papel definitivo, da imagem que vislumbrava de si mesmo.
Quase não contendo a vontade de sumir por trás das luzes e ao fundo da escuridão para nunca mais voltar, o ator prossegue na cena: é preciso cumprir ao menos o curto itinerário que o conduz ao centro do palco. Cada passo é marcado pelo pisar nos recortes de papel crepom em forma de plátanos amarronzados e amarelados que nem mesmo lhe retribuem um estalo vívido, ao contrário, desmancham-se sem substância sob seus pés. Jamais vira um outono feito da queda de folhas dessa espécie fora dos palcos. Procurando se concentrar no texto que enunciará, sente o papel grudar em seus pés a cada passo nessa caminhada tão falsa e insossa quanto um outono feito de plátanos de crepom.
Há uma espera ansiosa e, com o ensejo do roteiro que o manda observar os outros personagens com atenção antes de se pronunciar, o ator perscruta os jovens ainda entusiasmados, devotados às próprias promessas e imersos naquela sensação de banharem-se em realização. E, sem saber se seu rancor é desprezo por eles ou por si mesmo, pensa na estupidez que é essa entrega obstinada a seus papéis, a qual denuncia uma crença desmedida na arte como algo enobrecedor, acesso privilegiado a uma dimensão interdita ao senso comum. Porém tudo que lhes espera por trás das cortinas dos sonhos são meras cenografias falsas, folhas recortadas com papel crepom, atores feitos dos mesmos contornos toscos e noções fajutas da realidade, montagens e mais montagens de uma peça para ninguém ver. Esse desligamento do mundo não será mais tão encantador com a passagem dos anos, ele pondera. E, na frieza de seu silêncio, o olhar do ator inquire o elenco para anunciar a proximidade de um inverno glacial, o fim de tudo.
Chega o momento no qual sua voz deve ecoar por todo o auditório em uma fala de grande impacto. O ator sabe que, muito embora se trate apenas de um ensaio, é com grande expectativa que todos esperam serem deslumbrados por ele enunciando falas antigas que ainda servem à catarse. Mas de que adianta comovê-los se não convence mais a si mesmo? Essas falas já não ressoam nenhum sentido. Por isso, postado numa iminência, os olhos atentos, as folhas em desmanche grudadas aos pés, a gana que lhe falta como se lhe faltasse o movimento ou a voz, ele observa tudo ao redor e, sem maiores anúncios, desce do palco e adentra a escuridão do auditório, rumo à porta de saída sem qualquer solenidade, indiferente ao estupor e desconcerto de todos, que ficam para trás como outra plateia abandonada.
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Maurício de Almeida nasceu em Campinas, SP (1982). É autor de Beijando dentes (2008), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007. Tem contos publicados em antologias, revistas e jornais, além de traduções para o espanhol e para o inglês. Escreve também para o teatro. Mais: mauriciodealmeida.com.br.
Rafael Gallo é autor de Réveillon e outros dias, livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Jabuti na categoria Contos. Tem contos incluídos em antologias diversas e esse ano publica o romance Rebentar, pela Editora Record.