Série ‘Quatro estações’ apresenta: ‘Verão’, de Mariel Reis e Anderson Fonseca

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O conto abaixo integra a série Quatro estações, uma parceria com o Jornal Opção, em que dois autores escrevem uma breve narrativa inspirada numa estação do ano. Na próxima semana, Outono, de Mauricio de Almeida e Rafael Gallo.

Mariel Fonseca
Os escritores Mariel Reis e Anderson Fonseca

 

Verão

 

Edgar parecia um gorila resolvido. Gozava de respeito na cidade. Um investigador particular com muito pouco trabalho. Os clientes haviam sumido. A polícia não o procurava mais. A monotonia tomou a rotina do investigador desde o último caso: O Assassinato da Rua Morgue. Talvez o mais intrincado de sua carreira. Um dos seres humanos do zoológico havia escapado e protagonizado um crime brutal. Edgar enfrentou a descrença das autoridades que se recusavam a atribuir o caso a um animal enfurecido, lhes parecendo trabalho de um assassino como das inúmeras séries televisivas veiculadas em que a maioria dos psicopatas tinha um alto quociente de inteligência, além de beleza e força física.

Porém, o que o intrigava não era a apatia criminosa instalada na cidade, tampouco a falta de clientes ou a responsabilidade das séries de tevê pelo aumento da violência. A preocupação de Edgar era a existência de um outro dele, além das fronteiras. Nenhum macaco ousava atravessá-la, ninguém sabia o que havia por lá. Inúmeras histórias eram contadas a todos desde a infância e a escola as reforçavam. Edgar pensava consigo mesmo que não eram mais do que fábulas terríveis com o intuito de admoestação moral. Nunca lhe passou pela cabeça que fossem verdadeiras. Viveu toda a juventude sem inquietação nenhuma sobre o que se passava além das fronteiras. No curso universitário, embora não tivesse aptidão para a vida estudantil, fora apresentado, nas diversas fraternidades que percorreu, às teorias de multiuniversos. Escarafunchando as bibliotecas do campus, descobriu, em livros de autores duvidosos, a confirmação das informações obtidas nas conversas de fraternidades. No entanto, tudo aquilo parecia um mundo fantasioso, um escapismo juvenil. Agora, mais velho, quando tudo o que podia dar errado já havia ocorrido, quando já alcançara a notoriedade, resolvera reviver a tal fantasia.

O carro, aparelhado com o necessário, o esperava na garagem. Um mapa com as paradas para descanso, aberto à sua frente, mostrava parte do planejamento e em um bloco de notas, com mais de vinte folhas escritas, a estratégia se desdobrava. O objetivo era a captura de seu duplo. Edgar contava com armas tranquilizantes e letais; não contava ter que usá-las, mas sabia manejá-las, se preciso. Edgar, o gorila, sonhava com um homem com cabelos negros revoltos, testa alta, queixo curto, cujo nome e sobrenome, filiação era igual ao seu. Virgínia, datilografa e namorada de Edgar, rogava para que ele tirasse da cabeça a maluquice. Ele parecia a ela obstinado – em geral são assim os gorilas.

Partiria no dia seguinte, portanto, dormiria como um bebê. Retirou o carro da garagem, o estacionou em frente de casa, compraria alguns víveres no centro da cidade e voltaria para repousar. Ouviu o alarme de fuga de humanos, enquanto manobrava próximo ao supermercado, procurando vaga. A polícia não perdoaria quem lhe roubou a soneca do plantão. Edgar costuma deixar destrancada a viatura para as emergências, vício antigo, sem nenhuma serventia em tempos tão calmos. Levou consigo apenas as chaves e a carteira que estavam sobre o painel atulhado de quinquilharias, badulaques e um amontoado de multas vencidas. Entrou no mercado. Quando retornou, a rua estava tomada de policiais, os chimpanzés, agitados, segurando lanternas, reviravam os latões de lixo e observavam o interior dos automóveis largados ali. Edgar saudou o sargento Lerie, um velho conhecido.

 

– Como está, meu velho?

– Nada bem, Edgar. Parece que tivemos o perímetro da cidade violado por um humano…

– Boa sorte

– Obrigado, companheiro.

 

Edgar entrou no carro, jogou as compras no banco traseiro. Deu a partida e pisou fundo. As luzes das viaturas policiais sumiram do retrovisor. Ele abriu o porta-luvas, com rapidez, e sacou a pistola. Apontou para o humano encolhido, perto da sacola de compras e rosnou:

– Me dê um bom motivo para não estourar seus miolos…

O invasor estendeu a mão, timidamente, dedos longos e finos, a pele pálida, os olhinhos perturbados e penetrantes:

– Boa noite. E me desculpe. Sou Edgar.

O detetive piscou duas vezes antes de perguntar:

– Qual é seu nome?

– Edgar.

O detetive passou as grossas mãos no rosto, manteve a arma apontada para o invasor, relaxou os ombros, balançou a cabeça negativamente, e disse:

– Você só pode estar brincando. Você tem sobrenome? Qual é?

– Por que quer saber?

– Responde a pergunta!

– Alan Poe.

O investigador gargalhou escandalosamente. – Alan Poe, repetiu aos risos.

O homem contraiu as sobrancelhas sem entender o porquê do riso. Edgar percebeu que o outro estranhou sua reação.

– Ah, não me diga. Você não sabe por que estou a rir? Eu sou Edgar Alan Poe, você é Edgar Alan Poe. Você sou eu.

– Ou você sou eu. – disse o homem.

– Não, meu amigo. Eu sonhei com você, eu senti que você existia. Ei-lo aqui, diante de mim. Você é meu oposto em um universo paralelo.

– E se estiver sonhando nesse exato momento?

Edgar aproximou-se do homem, encostou o cano da arma na cabeça dele, e disse:

– Se eu atirar e você morrer e eu acordar, então era um sonho, se não, isso é real.

O homem engoliu a saliva.

– Mas se você não despertar, então terá a certeza de estar no Inferno.

– Ou se meus olhos permanecerem abertos constatarei somente que você é minha versão em um universo paralelo que violou as leis da física aparecendo aqui.

– Está assistindo muitos filmes ultimamente, detetive. Eu só fugi do zoológico e cometi um assassinato. Por que acredita tanto nisso?

– Você já assistiu O confronto, com Jet Li? Nesse filme o protagonista descobre que existem 12 versões dele em 12 universos paralelos e que uma dessas versões está eliminando todas as outras a fim de obter poder absoluto.

– Você tem assistido muita porcaria. Sugiro lavagem cerebral com a intenção de curá-lo de suas paranoias.

– Vá se ferrar! Você é ou não de um universo paralelo? Confirme a droga da minha hipótese.

– Admito que sim, e estou surpreso que você, detetive, seja um gorila. Aliás, que eu nesse mundo, seja um gorila.

Edgar sentiu-se tão ofendido com a palavra gorila que desferiu um soco no rosto do homem. Isso bastou para que escolhesse bem as palavras.

– De onde você é, seu desgraçado? – O sangue já fervia no corpo de Edgar, por ele teria matado o outro, mas o desejo de saber a verdade o detinha.

– Eu sou de outra terra e creio que estou aqui graças a um abalo sísmico. Se minha teoria estiver certa o abalo distorceu as ondas eletromagnéticas da terra criando um portal para essa versão alternativa. Estou aqui por um acidente.

– E o que você é em sua terra?

– Eu sou detetive e escritor. Mas isso importa agora? Só não posso deixar de rir da situação, lembra-me muito o filme Planeta dos macacos, um mundo governado por símios em que os humanos são escravizados. Se o diretor da porra daquele filme soubesse que a visão dele era tão real, acho que teria feito outra coisa. Agora estou aqui como um animal de zoológico diante de mim mesmo numa versão primitiva.

– Você é de fato um desgraçado. Merece outra porrada, mas desta vez não receberá. Em meu mundo o filme teve outro nome Planeta dos humanos. E você parece um animal. Responda-me, quem você matou?

– Não acreditaria, toda uma família que me olhou como um animal de estimação.

– Você não estaria aqui se não fosse o conceito de simetria que rege o universo, mas deveria haver alguma lei inviolável que proibisse a ruptura da simetria, por que senão você já teria desaparecido. Além disso, se sou de fato sua outra versão cósmica, por que ainda estou aqui? Por que não houve uma fusão entre nossos corpos e o desaparecimento de ambas as versões?

– Isso é claro, se desaparecermos, os dois universos também desaparecem. A questão é como fazer com que eu volte.

– Se continuar aqui tenho certeza que matará mais gente. Você não tem respeito pela minha espécie e nem pela minha realidade, seu escritor de bosta.

– Tenha certeza que matarei, sou um homem e você um gorila.

– Tenho certeza que sim, por isso não tiro o gatilho da sua cabeça.

– Mas até agora não apertou.

– Se eu apertar, quem irá morrer, eu com você ou esta realidade? Como não sei a resposta, não é hora de estourar seus miolos. No filme O confronto, a morte de um, não afeta os outros universos. E se isso valer para nós dois? Se você morrer talvez eu morra, mas não esta realidade.

– Dê logo a droga desse tiro.

– Tens razão, é hora de dar o tiro.

Edgar afasta a arma da cabeça do humano, coloca-a na própria boca e aperta o gatilho. O corpo do gorila cai em peso sobre o chão. O humano – o outro Edgar – observa a queda, estarrecido. O gorila estava morto, foi o que pensou. Mas não foi bem o que aconteceu. No instante após o tiro, a mente de Edgar sofreu um violento colapso, as luzes que o atingiam se desfizeram e um clarão mais intenso que o sol tomou seus olhos, em uma fração de segundos o universo desapareceu e outro emergiu do oceano de energia, como uma porta que se é aberta por dentro, a mente de Edgar atravessou incontáveis dimensões, quando esse instante passou, ele viu-se a si mesmo de joelho diante de um homem. Ele continuava um gorila, mas não era um detetive, era um animal. Suas mãos estavam ensanguentadas, ele as olhou com pesar, tinha matado não um, mas toda uma família, assim como seu eu do universo paralelo. Ergueu o rosto para ver o homem que o prendera. Não estava surpreso, era o outro Edgar. Logo assim que o viu, Edgar entendeu o que é o Universo, um infinito labirinto de portas, não importa por qual delas atravessemos, as situações serão idênticas ainda que a posição dos personagens tenha se alterado.

 ***

 

Mariel Reis é carioca, nascido em 1976. Cursou Letras (Uerj). A partir da década de noventa, começou a publicar seus contos em diversas revistas eletrônicas, culminando a experiência com a extinta revista Paralelos. Publicou o último livro A arte de afinar o silêncio (Ponteio Editora) em 2012. É um dos editores da revista eletrônica de contos Flaubert.

 

Anderson Fonseca é escritor e professor, autor dos livros de contos Sr. Bergier & outras histórias (2013) e O que eu disse ao General (2014, ed. Oitava Rima). Escreve diariamente duas laudas de um livro novo de contos, e quando não escreve, está brincando com sua filha Ana Clara.

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