A novela Seventeen, do escritor Kenzaburo Oe, nos mostra o risco que corremos quando não falamos sobre determinados grupos
Antes de ir ao ponto, gostaria de deixar algo claro: este texto não é uma crítica à direita como um todo. Enquanto grupo, ela é larga e tem vários subgrupos. Não falaremos de conservadores (que não são reacionários, mas isto já é me adiantar um pouco), nem de liberais. Estou falando daquele grupo barulhento que, por mais que fuja do entendimento da maioria, não para de crescer. Para tanto, gostaria de usar como base o conto Seventeen, do Nobel japonês Kenzaburo Oe.
Seventeen narra a transformação de um jovem de dezessete anos japonês de um simples aluno com seus medos de adolescência até um mostro de extrema direita. O personagem-narrador é baseado no adolescente Otoya Yamaguchi, um jovem ultranacionalista da mesma idade que assassinou o líder do Partido socialista japonês na frente das câmeras em 1960 (quem quiser ler este conto/novela, pode encontrá-lo em português em 14 contos de Kenzaburo Oe da Companhia das Letras).
O narrador-personagem, bem como Otoya Yamaguchi, passou de um adolescente normal para um monstro ultranacionalista, capaz de morrer pelo imperador, por quem fica obcecado, numa rápida mas não incompreensível mudança. Enquanto jovens no início dos anos 1960, ambos viviam um período de grande tensão. O Japão passava por um dos seus períodos mais difíceis, cujo resultado é o país tal o conhecemos hoje. Havia apenas quinze anos que Segunda Guerra Mundial tinha acabado. O Japão crescia consideravelmente no campo econômico graças ao investimento americano no país e a uma política de foco em trabalho e criação de valores gerenciada pelo Partido conservador. Estes conservadores, no entanto, apesar do nome, seriam uma mistura de liberais econômicos e conservadores brandos. Por exemplo, sua preocupação com a nação japonesa não mantinha muita ligação com a figura do imperador ou qualquer outra tradição do país para além de respeito. Por outro lado, sendo um dos poucos lugares da região a não aderir às ideologias de esquerda, viu partidos como o socialista crescerem consideravelmente, bem como grupos estudantis.
Neste ponto encontramos o narrador-protagonista de Seventeen. Ele não se encaixa de nenhuma forma nesses grupos. Ele despreza a direita no poder por criticar as forças de auto-defesa (nome do exército) e seu pouco respeito pelo passado e história do Japão. Segundo ele, pessoas ligadas a este grupo apenas pensam em acumular dinheiro e são “carreiristas.” Já com a esquerda, por mais que se esforce, e no princípio ele tenta, não consegue se ver dentro de um grupo com essas perspectivas, pois no fundo não as entende tanto quanto às da direita conservadora. Temos um jovem em idade de formação, cheio de ânsias e medos, todos normais da idade. Ele não se encaixa nem política nem socialmente. Na escola, é um menino inseguro. No íntimo, tem até vergonha de se masturbar. A agitação que nascia da contracultura também o fascina por um lado, só que não ao ponto de que ela se torne algo apaixonante.
Tudo morreria aqui se não fossem dois fatores importantes.
Primeiro, a sua família. O mais novo de três filhos, seus pais e irmãos não lhe dão muita atenção. O livro inicia no dia do seu décimo sétimo aniversário, lembrado apenas pela sua irmã. Todos no conjunto familiar possuem uma característica que o incomodam: o pai liberal, que o deixa fazer o que quiser segundo uma visão progressista americana (quando na verdade ele clama por atenção, não independência); a mãe ultra passiva e subserviente ao marido; o irmão mais velho que o abandonou ao sentir o peso da vida adulta (quando ele esperava encontrar um modelo forte masculino nele, já que o pai não o é); a irmã conformada que nunca casará por causa dos óculos grossos. Sem amigos e um modelo a se apegar na família, ele fica à deriva à espera de um modelo para seguir.
O outro fato importante que se segue é ser convidado por um colega de escola para ganhar dinheiro como agitador de um figurão de um partido nacionalista. Se no começo ele não se mostra entusiasmado, com o decorrer do discurso – um sem fim de clichês nacionalistas, preconceituoso com tudo e todos –, ele acaba se sentindo cativado e é aceito na agremiação. Ele se liga ao líder, que o adota pela sua juventude e se torna seu mentor, começa a usar o uniforme da sua direita (segundo ele mesmo, uma cópia barata dos da SS), lê livros indicados pelo mentor. Em poucas semanas, o jovem confuso e inseguro se torna o mais jovem e agressivo dos membros do partido, atacando e sendo preso sucessivas vezes. Ele se diz capaz de dar a vida à causa da pátria e vê em tudo e todos a degradação, devotando todas suas ações para elevar novamente o imperador ao comando do país.
Aqui termina a história. Kenzaburo Oe construiu o perfil do jovem Otoya Yamaguchi e de como um jovem passou em poucos meses de uma pessoa comum a um assassino político.
Agora quero falar daquela direita.
Acho que a diferença e o embate entre direita e esquerda na maior parte do tempo saudável e necessário. As críticas fazem crescer e levam cada lado a se reavaliar, coisas do tipo que uma democracia demanda. No entanto existe aquela direita no Brasil e ela cresce cada vez mais. Aquela que cada vez mais elege Messias agressivos e reacionários como Jair Bolsonaro. Aquela que clama por intervenção militar e incita cada vez mais a violência contra qualquer grupo que não for a favor do seu ideal nacionalista. Este grupo cada vez cresce mais, o que não me surpreende. Assim como no período narrado em Seventeeen, estamos num momento de mudança em que forças sociais, econômicas e comportamentais puxam o tecido social para vários lados ao mesmo tempo, deixando a maioria desnorteados. É normal nos apegarmos ao primeiro que grite mais alto (e ironicamente, no Brasil atual e em Japão de Seventeen, os líderes carismáticos destes grupos de extrema direita ganham seus rebanhos no xingamento, na ameaça e no grito.) Jovens, adultos e idosos cada vez mais, bem como o narrador-protagonista, se aglomeram em torno dessa figura bizarra.
Não me preocupo com os velhos. Tendo a acreditar cada vez mais que uma dose de senilidade pequena junto a um cinismo grande sobre o passado que eles imaginam muito maior do que realmente foi faz com que se apeguem a tais figuras. Já os adultos e jovens me preocupam, em especial os últimos. Na era da informação, estes tendem cada vez mais, após se apegaram a ideias de extrema direita, a achar que qualquer coisa que se oponha a ideia agressiva de que tudo está errado frente ao seu Messias é um inimigo e atacá-lo – verbal ou fisicamente. Muito da animosidade que atravessamos, vem também desse grupo que não aceita a existência de minorias (segundo eles, mimimi), muito menos de opositores/críticos (que não sabem mitar).
Já pensou, leitor, que talvez estes jovens acabem trilhando o mesmo caminho de Otoya Yamaguchi e ataquem alguém, seja ele um político ou simplesmente alguém que não compartilha dos seus ideais. Este ufanismo-nacionalista, que ama louvar um passado glorioso que nunca existiu e escolher salvadores da pátria e da nação, é semelhante ao descrito por Oe em Seventeen. O memso que levou Otoya Yamaguchi a cometer um assassinato.
Talvez devêssemos dar maior atenção a esse grupo que não para de crescer, pois eles não são bestas aterradoras vindas de outro mundo. Antes são aqueles com quem convivemos diariamente e que nos cercam todos os dias.