
Especialistas estabelecem paralelo entre as peças de Shakespeare e a política brasileira em palestras disponíveis no Youtube
William Shakespeare (1564-1616), considerado um dos maiores dramaturgos da literatura mundial, senão o maior, deixou uma obra cujo caráter universal faz com que seja rediscutida a cada época. A política é tema recorrente de suas peças, que frequentemente contam com personagens da monarquia como protagonistas. Por isso é comum que especialistas brasileiros procurem associar os fatos e pensamentos do teatro shakespeariano à realidade do nosso país. É o caso do historiador Leandro Karnal e do crítico literário João Cezar de Castro Rocha, que comentam as semelhanças entre os governantes do século XVI europeu e os políticos contemporâneos brasileiros em palestras disponíveis no Youtube.
Durante o café filosófico Hamlet de Shakespeare e o mundo como palco, Leandro Karnal analisa uma das peças mais famosas do dramaturgo inglês sob a ótica da sociedade atual. Ele proclama a frase de efeito “Hamlet é o anti-facebook”, título dos vídeos da palestra. Hamlet é considerado, pelo teórico Harold Bloom, o primeiro homem moderno, senhor de seu destino, não subordinado a forças divinas. Justamente pela consciência brutal de si mesmo, o protagonista é melancólico, não é feliz e nem quer aparentar felicidade, como a maioria dos usuários das redes sociais. Ele sofre pela culpa da responsabilidade por seus atos e pelo peso da decisão sobre que caminho tomar. Rema contra a corrente, pois o ser humano normalmente procura se moldar à aceitação social, preferindo a crítica do julgamento alheio à indiferença do esquecimento.
Se o excesso de conhecimento próprio provoca crise existencial, a ignorância costuma ser uma bênção. Nesse ponto, Karnal estabelece um paralelo com a política brasileira e comenta sobre as “pessoas felizes”: aquelas que acreditam que a corrupção no Brasil está a cargo de um único partido – o culto da corrupção isolada. É mais fácil crer que a substituição de governantes resolveria a situação de crise do que refletir sobre a possibilidade de mudanças mais profundas no sistema político brasileiro, a começar pelo cotidiano do cidadão. Da mesma forma que Hamlet busca sua vingança e coloca a responsabilidade nos outros em vez de analisar suas próprias culpas, a população, ou parte significativa dela, responsabiliza os governantes pelos males nacionais e condena a corrupção enquanto continua praticando pequenos gestos de corrupção no dia a dia, o famoso “jeitinho brasileiro”. A sociedade é um teatro e talvez ser louco, como o príncipe dinamarquês se torna ou simula, seja a única possibilidade de ser sadio num mundo doente. O preço a pagar pela autenticidade numa sociedade mascarada é suportar o peso da própria consciência. Iludir-se com soluções paliativas é a escolha mais cômoda.
Passando às análises de João Cezar de Castro Rocha, no web-programa Saideira Literária, cuja primeira temporada foi intitulada 2 ou 3 coisas que Shakespeare poderia ensinar aos políticos brasileiros, é possível observar mais nitidamente a relação entre a filosofia de outras peças shakespearianas e a política brasileira. Em Rei Lear, o governante deseja abdicar do cargo, legando-o a uma de suas filhas, porém sem abrir mão dos benefícios do trono, como é o caso de muitos políticos brasileiros, que procuram a reeleição ou a eleição de membros da família para se manter no poder. A única filha ética, que se recusa a adular o rei para conquistar sua preferência, Cordélia, é deserdada; da mesma forma, a postura ética de um candidato sem coligação partidária não o permitiria chegar ao poder no Brasil.
Com Rei Lear, compreendemos que o poder é a autoridade de distribuir os benefícios do próprio poder. Já em Ricardo III, depreende-se que o poder deforma, tendo em vista a deformidade física do protagonista mau caráter, mas também seduz e atrai como ímã, o que o leva a obter tudo o que deseja, pelo viés do interesse, de modo quase inverossímil. Assim, os partidos brasileiros se tornam repentinamente aliados ou inimigos de acordo com os novos interesses em jogo; nenhum tipo de acordo parece impossível de acontecer.
Em Macbeth, peça mais violenta do dramaturgo, depara-se com os limites da ética na ação política. Para ser bem sucedido politicamente, Macbeth não pode ter escrúpulos, conforme aconselha sua esposa estrategista. Ele é atormentado pela culpa de seus atos assassinos, necessários para chegar ao poder, e isso o arruína. A noção de ética se transforma de acordo com os interesses políticos: quando um candidato é da oposição, julga as ações do governante atual; porém, quando assume o poder, acaba tomando as mesmas medidas criticadas. A ética do estadista é diferente da ética do indivíduo, pois o que ele almeja sempre é se manter no poder.
Júlio César aponta a política como espetáculo. Roma é uma República, porém César deseja governar despoticamente, atrapalhando a engrenagem política. Os conspiradores contra o imperador argumentam que sua morte é necessária para o bem da República, para a liberdade do povo, que parece aceitar o argumento. Entretanto, uma reviravolta se dá quando Marco Antônio anuncia que César deixou um testamento beneficiando os cidadãos romanos, o que faz com que ele volte a ser estimado, e Brutus, seu filho adotivo que o assassinou, condenado. Caso semelhante se deu no Brasil quando Getúlio Vargas se suicidou e destruiu seu adversário Carlos Lacerda, que curiosamente traduziu essa peça de Shakespeare. O povo é volúvel e pende para o lado de quem lhe prometer mais. A política de pão e circo, das pequenas reformas e benefícios, ainda parece funcionar.
Finalmente, na comédia Medida por Medida, temos a utopia de um governo ideal, em equilíbrio com os interesses privados e coletivos. Esse seria o meio termo, a medida por medida. Os governantes são um reflexo da população, e mesmo um tirano pode ser eleito democraticamente. O Brasil não tem tradição de manifestações políticas e aceita, conforme já comentado, as pequenas corrupções do cotidiano, que se estendem para os políticos no poder, em maior escala.
Num momento de instabilidade política como esse que vivemos, é preciso refletir sobre as atitudes possíveis da população, sem ignorar a história, que tende a se repetir em ciclos. Não podemos cair em armadilhas de manipulação midiática ou promessas vazias de mudança. Precisamos nos envolver ativamente na política brasileira, porém de maneira consciente. Sigamos as valiosas lições das peças de Shakespeare com sensatez, adaptando-as para nosso contexto.