Sobre finitude e sábios

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Sobre finitude e sábios

Uma reflexão sobre a nossa finitude, compreendendo a morte, posto que inevitável, como caminho de transformação e renascimento.

Jovens, envelheçam

”Envelhecer”, respondeu Nelson Rodrigues a um repórter que lhe pedira para dar um conselho aos jovens. Simples assim: “Envelhecer”. Seco, irônico e um tanto antipático. Nelson sendo Nelson – na veia. No centro dessa resposta, a certeza de que, troca injusta ou não, se temos mais vigor na juventude, temos, ao menos em tese, mais sabedoria à medida que envelhecemos. E o vigor se esvai, mesmo que esse processo seja ligeiramente retardado por treinos em academias que fedem a suor velho e calçadões que já foram chamados por um velho amigo de “grand prix de safenados”. Só compreendemos a ideia do tempo quando ele, o tempo, começa a nos devorar – fenômeno que a maioria passa a sentir por volta dos quarenta anos. Antes disso, a vida é uma sequência inteira de afirmação de uma vida eterna, na qual a morte é algo incompreensível, de tão distante.

Será o fim?

O tempo nos lembra que um dia necessariamente nos defrontarmos com algo que passamos a vida a fugir dela: a ideia de finitude, de fim de processo, de interrupção desse estado de coisas que chamamos vida. Os pensadores do chamado estoicismo achavam a morte como constitutiva da vida. Afinal, como seres humanos, só aprendemos coisas por contraste: sabemos o que é o dia quando o contrastamos com a noite; entendemos o que significa o amor quando sentimos falta de uma pessoa importante; sentimos frio quando o contrastamos com a sensação de calor. Como na canção de Lulu Santos, “Não existiria som se houvesse o silêncio”. Sêneca, pensador romano filiado ao estoicismo, dizia que não seria “o último grão de areia que esvazia a clepsidra, mas todos os que caíram antes: assim sendo, a última hora, a do nosso fim, não é a única que provoca a nossa morte, mas a única a levá-la a termo”. Esse modo de pensar a vida (como interligada à morte) estendeu-se por séculos, tanto que Montesquieu, mais de vinte séculos depois, soltaria a sua máxima mais conhecida: “viver é aprender a morrer”.

A morte como falta de controle

Estranho, um de meus cinco leitores diria, esta coluna estar falando de morte numa estação como o outono, quando as folhas caem para, lá na frente, renascerem: renovação. Acreditamos na renovação e na vida por nos manterem na zona de conforto da infinitude, da eternidade falsamente prometida, inclusive pela publicidade. Mas o fim da linha, para todos, está em algum lugar à frente. Mais ou menos anos adiante, todos enfrentarão o tal do mistério sobre o qual todas as religiões já tentaram pontificar verdades. Acredita quem precisa.

A passagem (os espíritas chamam assim a morte) nos aterroriza porque sempre gostamos do controle sobre nossa vida. E a morte é a figuração mais pura da falta de controle, pois é um “não-sei”, buraco negro de nossa existência. Foi Franz Kafka quem na literatura melhor figurou essa encruzilhada do homem, quando inventou seu personagem da “A metamorfose”, Gregor Samsa (aquele que “Certa manhã, depois de despertar de sonhos conturbados, […] encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”). Samsa é um homem que morreu para sua humanidade, mas renasceu para uma nova condição: a de inseto. 

Transformação e renascimento

Então volto à questão do leitor fictício desta coluna: por que falar de morte hoje, época em que se valoriza sorrisos e felicidade aparente nas redes sociais (afinal, ninguém fotografa-se em depressão e publica)? Pois não haveria momento melhor para falar de morte. Não aquela morte da putrefação, do enterro, da carne que se solta dos ossos, das minhoquinhas de nome complicado andando lépidas por nossas antigas tripas, mas a morte outra, a da transformação, da passagem de uma condição para outra, de um estado para outro.

Inícios de ano e mudanças de estação são épocas propícias para transformações, mudanças, reavaliações, reorientações. A partir de hoje, pensamos, já que acabou o Carnaval, passou a Semana Santa e tal, vou parar de fumar, fazer um curso, um filho, uma horta, vou pintar a casa ou construí-la. Projetos que geram futuro. Coisas prosaicas, eu sei, mas necessárias para continuarmos acreditando, como os tubarões que, se param de nadar, afundam.

Pois são essas coisas cotidianas que, de uma forma ou de outra, mantêm em nós a ilusão de que fugimos da morte, de que ainda estamos vivos e estamos fazendo por onde nos mantermos aqui, nesse mundo dos vivos, habitados por vários Gregor Samsa, transformando-nos, reinventando-nos.

Créditos HL

Esse texto é de João Peçanha. Ele teve revisão e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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João Peçanha é escritor e professor. Doutor em Estudos Literários pela UFF e mestre em literatura pela USP. Tem vários contos premiados em diversas revistas nacionais. Seu livro de contos “Cantata para dezesseis vozes e orquestra” ganhou o prêmio nacional da revista Cult (2003). Sua peça teatral “O pacote” ganhou o prêmio nacional de dramaturgia da Fundação Cultural da Bahia (2004). Publicações: “Dezamores” (coletânea de contos reunida pelo escritor João Silvério Trevisan, 2003); “O pacote” (peça, 2005); “Satie manda lembranças” (contos, 2007); “O último selo” (crítica literária, 2009). Os romances vieram na ordem: “Patagônia Babilônia”, “Os cadernos de Pietene” e "Ave do sertão", este último escrito a quatro mãos com Paula Caminatti. Seu romance mais recente, "Aquela estranha arte de flutuar" (2022), foi publicado pela Editora 106.

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