Tzvetan Todorov investiga a vida de um dos mais importantes pintores espanhóis, através da obra Goya à sombra das luzes.
Gertrude Stein recomendava a jovens escritores que comprassem quadros em vez de roupas – seriam mais úteis em seus interesses literários. Mas, certamente, não é este o motivo que leva o crítico Tzvetan Todorov a se inclinar sobre a obra do pintor espanhol Francisco de Goya, numa biografia ensaística, de forma a traçar paralelos entre a pintura e a literatura.
Francisco José de Goya y Lucientes nasceu em 1746 e veio a falecer em 1828, aos 82 anos. Neste livro de Todorov, o leitor acompanha de perto a vida do pintor espanhol, a partir de seu conturbado início como artista, quando suas ideias ainda se chocavam com os padrões vigentes da época. Mesmo assim, nota-se um Goya artificioso em conquistar o sucesso. Em 1773, casou-se com Josefa Bayeu, irmã de um dos pintores mais famosos de seu tempo, Francisco Bayeu. Todorov afirma: “Nenhum testemunho permite ver nessa união uma história de amor. Nada prova que Goya tenha jamais pintado um retrato da esposa, e um único desenho (GW 840) preserva os traços dela;”. Posteriormente, é nomeado pintor do rei e passa então a trabalhar em retratos da realeza, além de uma série de encomendas, sob a garantia de ter um abastado rendimento anual. Começa aí sua vida dupla.
Um pintor, duas obras
Algo a que Todorov parece querer tomar a mão do leitor e lhe mostrar, sempre incisivamente quando se trata deste ponto, é a produção paralela de Goya. Se, por um lado, era obrigado por seu dever social a produzir as telas que lhe pediam, por outro, dedicava-se à produção de uma coleção particular – como um diário, mas em vez de palavras, através de desenhos.
Esta segunda linha artística se acentua após novembro de 1792, quando é atingido por uma grave enfermidade, da qual não se tem registros precisos sobre o que seria. É fato que a partir daí, Goya passa a lidar com a surdez, e tal deficiência apenas acentuou sua visão de mundo particular. Bruxas, demônios e outras criaturas míticas passam a aparecer nas obras do pintor, porém ao se analisar os quadros, nota-se que estas aparições têm muito menos de fantasiosas do que aparentam. Em Goya, nada mais são do que extensões da própria consciência do homem, como se antecipassem em muito os conceitos freudianos.
Baudelaire definiu a situação da seguinte forma:
“O grande mérito de Goya consiste em criar o monstruoso verossímil. Seus monstros nasceram viáveis, harmônicos. […] Todas essas contorções, essas faces bestiais, essas caretas diabólicas são penetradas de humanidade”.
Sob as sombras, um pintor-escritor
Apliquemos o conselho de Gertrude Stein também à obra de Goya, pois o pretenso escritor pode aprender muito ao estudar as imagens deste pintor.
Por exemplo, olhar um conceito pré-estabelecido, buscar uma outra visão e trazê-la assim para a sua ficção. Só para se ter uma ideia, Goya negava totalmente a cor. Seu argumento era este: “Na natureza, a cor não existe, tampouco a linha; só existem o sol e as sombras. Deem-me um pedaço de carvão, e eu vos farei um quadro: toda a pintura está nos sacrifícios e nos partis pris!”.
Outro ponto interessante a ser observado é a forma como Goya lida com sua obra, de maneira muito semelhante ao que Tchekhov defendia, do autor não se impor como alguém que julga sua criação. Todorov diz:
“As pessoas comuns não valem mais do que aquelas que as oprimem; o Capricho 24 (GW 499) mostra a multidão regozijando-se ao ver uma mulher condenada pela Inquisição: os risos são esgares, os rostos caricaturais, o povo já não é senão populacho. A legenda confirma o julgamento desencantado do pintor: ‘Não houve remédio’. Goya não ministra lições, ele formula constatações. Não se coloca numa perspectiva didática, suas gravuras não parecem dizer tanto ‘não convém agir assim’ quanto ‘eis como se comportam os homens e as mulheres’”.
Para pessoas à frente de seu tempo
Engraçado que esta afirmativa do subtítulo sirva tanto em relação à obra de Goya, como para este livro de Todorov.
Em suas pinturas e desenhos particulares, o pintor criava obras muito à frente de seu tempo, de maneira que tinha plena consciência de que poucas pessoas ao seu redor poderiam entendê-lo. E da mesma forma isto serve para a pergunta: por que ler esta obra de Todorov sobre Goya? Afinal sua utilidade, embora a linguagem seja acessível, também se apresenta para pessoas à frente do tempo do crítico.
Parece contrassenso, mas ler este livro é mergulhar num universo de sombras para chegar à uma nova iluminação.
Goya à sombra das luzes
Tzvetan Todorov
Companhia das Letras
312 Páginas
2014