Sonhos rebobinados: de encontros com Sartre e Fidel até um cemitério virtual bem familiar

0

A crônica não morreu com Rubem Braga em 1990: temos o jornalista e escritor Humberto Werneck

werneck
Jornalista e escritor Humberto Werneck, autor de “Sonhos rebobinados”

Eu* começo dizendo que, pra mim, o mineiro Humberto Werneck é uma espécie de novo Rubem Braga das crônicas. Rubem Braga perdeu seu prestígio? Não, de maneira nenhuma. Apenas digo que a crônica não morreu junto com ele, como muitos insistem em dizer. Werneck é um cronista dos bons, e isso nós podemos perceber também em suas crônicas, aos domingos, no jornal O Estado de S.Paulo e em livros como O espalhador de passarinhos & outras crônicas (2010), Esse inferno vai acabar (2011) e Sonhos rebobinados (2014), e este será aqui comentado.

Sonhos rebobinados, lançado pela Arquipélago Editorial, na coleção “Arte da crônica”,é aquele livro que te faz sorrir no final de cada crônica, o que te deixa mais curioso para ler a seguinte. Parece que, para Werneck, tudo é assunto para uma boa conversa repleta de humor.  Neste livro, esbarramos em paqueras, relacionamentos sem sexo (na crônica com o bom título Cinquenta tons de branco), com Fidel Castro em Cuba e com Sartre em Paris. Sabemos como é sentar em “tronos” parisienses, sobre cemitérios para homens e bichos e até mesmo sobre cemitérios virtuais, crônica que merece uma atenção especial.

Em Cemitério virtual, o cronista fala sobre os mortos que ainda permanecem vivos no Facebook. Werneck faz uma profunda análise desse problema:

Seguinte: a pessoa abre uma conta no Facebook, farta-se de acumular amigos, curtir, cutucar, comentar, compartilhar, toda aquela lambança social-virtual que conhecemos, até que um dia, desculpe tocar no assunto, estica as canelas. Na vida real, bem entendido. Porque na vida virtual, e este é aqui o centro da questão, ela continua viva. Você já tinha pensado nisso? O fato é que o Facebook vai aos poucos se coalhando de defuntos. Virou um cemitério virtual. (WERNECK, 2014, p.39)

Pois bem, é esse o assunto da crônica: as almas penadas existentes no Facebook. Parece um trágico assunto, mas o cronista trata disso de maneira bem-humorada. Ele nos chama atenção para o fato de que nem mesmo a morte vai nos tirar da rede social e que, posteriormente, podemos estar “em um relacionamento póstumo”. Sugere, ainda, um item por lá, além do cutucar, do compartilhar e o curtir, poderia haver um “cremar”.

E o bom humor não acaba aí. Descobrimos que podemos nos tornar brilhantes após a morte. Como assim? No lugar de cinzas podemos nos tornar diamantes; é… a modernização também chegou nos serviços funerários. Também ficamos sabendo que, após os 60 anos, a chance morrer no dia do nosso aniversário é maior. Algo bastante trágico.

Passamos por questões existenciais no livro. Como quando dona Alzira, na crônica Centrifugando, compara as funções da lavadora de roupas com a vida. Nos anos de formação estamos de molho; depois vamos para o mundo impiedoso que nos chacoalha de lá pra cá; em seguida vem o enxágue, que está relacionado à progressiva depuração que a vida vai promovendo nas pessoas, de acordo com o amadurecimento; quando maduros e limpos, entramos na fase derradeira, a centrifugação, em que envelhecemos, completamos boa parte daquilo que nos foi dado viver. E, por fim, percebemos que um dia todos nós fomos ou ainda somos (depende do leitor) uma Brastemp.

sonhosrebobinados
“Sonhos rebobinados” (Arquipélago Editorial, 2014)

Além do já mencionado, durante a leitura fazemos um passeio pelo passado de Humberto Werneck: seu período na escola, suas travessuras, seu primeiro emprego. E temos outros encontros e reencontros com: Fernando Sabino, Pedro Nava, Hilda Hilst, entre outros. E vale destacar que, com exceção da crônica O nhenhenhém dos funhanhados, todas as outras foram publicadas originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

E por que Humberto Werneck é, pra mim, um cronista ao maior estilo “Rubem Braga”? Assim como ele, o mineiro tem um olhar atento, retrata pessoas e momentos de forma inesquecível, é como se estivéssemos ali, participando daquele momento retratado na crônica. Ao lê-lo, passamos por risos altamente alegres e até risos melancólicos, sem falar nas gargalhadas. Ao rebobinar suas memórias, mostra-nos a grande beleza dos pequenos – e não menos importantes – momentos e a possibilidade do riso, independente do que se passou.

 

*Acredito que esta seja a primeira vez que uso um “eu” em um texto meu aqui no Homo Literatus.

 

Referência:

WERNECK, Humberto. Sonhos rebobinados. Arquipélago Editorial, 2014.

 

Não há posts para exibir