Sozinho e desprovido de tudo, Alex Supertramp se tornou um exemplo de como é possível viver sem o consumismo, mas também de que o equilíbrio é que conta.
O que leva um jovem americano de boa situação, que acabou de se formar com as melhores notas na faculdade, largar tudo, doar suas economias e partir rumo ao Alasca em seu carro velho, assim, sem avisar ninguém?
É o que se pergunta muita gente até hoje quando toma conhecimento do caso de Christopher McCandless.
O jornalista e escritor Jon Krakauer publicou o livro “Na Natureza Selvagem” em 1996, e o diretor Sean Penn produziu o filme de mesmo título em 2007. Ambos narram a história real do rapaz de classe média que faleceu em 1992 durante uma aventura no Alasca selvagem, para a qual vinha se planejando há dois anos.
Por meio da narrativa, conhecemos as motivações, a vida de andarilho, as pessoas que encontra pelo caminho, os aprendizados e o fim trágico do idealista, crítico e impetuoso Chris, ou Alex Supertramp, como ele mesmo se apelidou.
Um rebelde
Christopher Johnson McCandless nasceu em 1968 em Los Angeles, Califórnia. Filho de Walt McCandless e Wilhemina Johnson, fundadores de uma bem sucedida empresa de consultoria, e irmão de Carine, quatro anos mais nova.
Chris e Carine cresceram em um ambiente de brigas frequentes entre os pais, já que estes trabalhavam juntos em casa durante muitas horas seguidas, o que os deixava quase o tempo todo estressados. Os irmãos se apoiaram para suportar a situação e se tornaram grandes amigos. Mas Chris guardava uma grande mágoa da família, especialmente do pai, conhecido por seu temperamento difícil.
Esse ressentimento cresceu ainda mais quando o jovem descobriu que o relacionamento dos pais havia começado com uma traição: Walt era casado e possuía outros filhos quando se envolveu com Wilhemina, na época, sua secretária, que engravidou. Chris seria, então, inicialmente um bastardo. Essa história foi ocultada depois que Walt se divorciou e se casou com Wilhemina.
Segundo a biografia levantada por Krakauer, Christopher teria sido, desde cedo, extremamente insubordinado, impetuoso e temperamental – como seu pai. Não lidava bem com ordens de qualquer tipo e, apesar de se mostrar sociável e apreciado pelos amigos, necessitava de longos momentos de solidão e não permitia que ninguém penetrasse na sua intimidade, chegando a ser considerado arredio. A única exceção talvez seja a irmã, pessoa de quem se sentia mais próximo.
Criticando o consumismo, sem ser hipócrita
Conforme crescia, o rapaz só se tornava mais crítico: via muitos problemas no tipo de vida consumista que os pais levavam e na maneira como a sociedade se organizava, supervalorizando diplomas e posses.
Grande leitor de autores como Jack London, Leon Tolstoi e Henry David Thoreau, lamentava que o ser humano houvesse perdido de tal forma o contato com a natureza, afastando-se do verdadeiro sentido de sua existência.
Assim, após se formar em história e antropologia pela Emory University, com excelentes resultados, Chris decide pegar a estrada e virar nômade. Ele doa todas as suas economias à caridade (24 mil dólares) e parte apenas acompanhado de seu velho Datsun amarelo, sem dar notícias.
Virada nômade
Durante dois anos, Chris vive como andarilho pelas cidades dos Estados Unidos. Ele abandona o carro após um pequeno incidente, queimando também o pouco que lhe restava de dinheiro (cerca de 23 dólares), numa alusão ao desapego aos bens materiais. E vive, assim, de carona em carona, consegue alguns empregos temporários para se sustentar enquanto se prepara para sua grande aventura no Alasca.
Conhece tipos interessantes pelo caminho, faz amigos e recebe constantes convites para estabelecer residência, porém não consegue se manter muito tempo no mesmo lugar. Especialmente quando chega a primavera, é tomado por uma espécie de “comichão nos pés” e parte.
Era uma vez no Alasca,
Em 1992, chega ao Alasca, com pouco equipamento e muita sede de aventura. Encontra um ônibus onde acampa, que apelida de “Ônibus Mágico”, antigo alojamento de operários de uma mina. Mantém-se por cerca de cem dias sozinho, caçando seu próprio alimento, lendo e escrevendo algumas experiências num diário.
Tudo indica que se preparava para retornar quando foi impedido pelo aumento inesperado do volume de um rio em seu caminho. Finalmente, é encontrado morto dentro do ônibus, seu corpo já em decomposição. A causa da morte teria sido inanição, mas não se sabe ao certo o que o teria levado a isso. A hipótese mais aceita é a de que ingeriu uma semente venenosa por acidente.
Sua história se tornou famosa, motivou outros aventureiros a realizar a mesma rota – muitos dos quais encontraram o mesmo fim trágico –, deixou os familiares extremamente abalados e fascinou artistas como os já mencionados Jon Krakauer e Sean Pen.
Retratado
A abordagem do filme de Sean Penn é mais romântica e suprime as passagens mais duras da vida nômade de Alex Supertramp, como os períodos de mendicância e os problemas que teve quando trabalhou no McDonald’s, pois os outros funcionários reclamavam de seu cheiro – ele não tinha acesso a banho diário.
Já no livro, conhecemos o ponto de vista jornalístico de Krakauer, que transmite uma mescla de admiração, lamento e cautela ao avaliar o comportamento de Chris.
Herói ou louco? Aventureiro ou inconsequente? Espírito livre ou um egoísta? Uma definição categórica do personagem parece difícil e de pouca utilidade.
Viagem de busca ou de fuga?
Se, por um lado, Chris cativou e encantou muitos em seu caminho, por outro magoou imensamente a família. Talvez hoje em dia uma boa terapia resolvesse grande parte dos seus traumas de infância. Ele não precisaria ser tão radical e buscar tão longe o que deveria ser trabalhado no próprio interior…
Suas críticas ao estilo de vida capitalista, em que as pessoas se matam de trabalhar para pagar por produtos e serviços de que não necessitam e dos quais fazem pouco proveito, são pertinentes, mas será que a negação quase absoluta do apego, seja a bens materiais ou laços afetivos, não é tão danosa quanto? Sendo assim, Chis realizou, de fato, uma viagem de busca ou de fuga? Esses são alguns pontos de reflexão importantes, que dependem muito da perspectiva que adotamos ao analisar a situação.
“Os jovens tendem a ser muito rígidos com seus pais”, comenta Krakauer. E também muito convictos de seus ideais. Os que conheceram Christopher durante a viagem o classificam como um rapaz inteligente e gentil, porém teimoso e orgulhoso. Ele não teve tempo para amadurecer suas ideias e desenvolver seus afetos de modo mais saudável.
Ainda que planejasse voltar à civilização, talvez até se casar e se estabelecer em algum momento, segundo a pesquisa do autor do livro, Chris sabia dos riscos de sua expedição. Não foi apenas a pura fatalidade que causou sua morte, mas também a escolha consciente de se expor a condições tão adversas sem ajuda e planejamento adequado. Pena que parece ter descoberto um pouco tardiamente que “a felicidade só faz sentido quando compartilhada”, conforme anota na última página de seu diário.
As histórias para contar
O que se torna mais interessante, tanto no filme quanto no livro, são justamente os momentos de interação com quem encontra e as impressões deixadas pelo caminho. Seja um casal de hippies, um solteirão boêmio, uma jovem apaixonada ou um idoso solitário, todos têm algo a lhe ensinar e a aprender com ele.
A hippie projeta em Chris a imagem de seu filho que fugiu anos antes, lhe causando imensa dor. Por isso, ela sempre pede ao jovem que dê notícias a seus pais, lembrando-lhe da importância da base familiar, ainda que haja tensões na relação.
A jovem lhe oferece uma oportunidade de criar raízes, assim como o idoso, que perdeu a família em um acidente e nunca se recuperou por completo, passando a viver de maneira reclusa num mesmo local. Ele lhe pede para registrá-lo como seu neto, mas Chris promete conversar sobre isso apenas na volta do Alasca, o que sequer chega a acontecer. Mas estimula o amigo a viajar e se desprender de sua vida pacata, pois nunca é tarde.
Onde estarão as respostas?
Normalmente, conseguimos superar os ímpetos da juventude, as mágoas do passado e ir em frente sem maiores turbulências. O próprio Krakauer conta no livro sua experiência em escalar o Polegar do Diabo, da qual sobreviveu por pouco. Segundo ele, tirou pouco proveito do feito, ficou vivo por sorte e não encontrou as respostas que tanto procurava. Ele também possuía uma relação conflituosa com o pai, que depositou muitas expectativas em seu futuro, mas tentou entender seus motivos e fazer as pazes com sua história.
Carine, a irmã de Chris, conseguiu perdoar os pais e tocar sua vida, estabelecendo-se profissionalmente e criando sua própria família. Chegou a escrever um livro sobre a história do irmão intitulado “Into the Wild: the wild truth”. Sempre o admirou e respeitou, não guarda ressentimento do que fez e tenta compreendê-lo, mas também confessa o sofrimento que provocou sua morte.
O perfeito equilíbrio entre apego e desprendimento, aventura e estabilidade não parece ser possível.
Em determinadas circunstâncias e para certas pessoas, a necessidade de criar asas parece ser maior que a de fincar raízes ou vice-versa. Mas o que a história de Chris parece nos ensinar é a criar coragem para realizar nossas viagens, internas ou externas, de forma mais ou menos segura. Martha Medeiros diz sobre o filme: “Não é preciso ir ao Alasca, mas manter-se fiel à nossa verdade já é meio caminho andado”. Afinal, qual natureza é mais selvagem que a do coração humano?