Dirceu Villa por uma poética animal na literatura
Analisando a subjetividade animal
A problematização de uma suposta subjetividade animal é frequente na literatura. Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Machado de Assis, Jorge Luís Borges, Júlio Cortázar e seu bestiário moderno, são muitos os escritores e escritoras que voltaram seus olhos para a singularidade animal e, ainda mais, à nossa semelhança com eles.
Dirceu Villa, escritor paulista, opera esse mesmo procedimento, fazendo ver no seu “cefalópode” parte do animal que reside em nós. Villa é ensaísta, tradutor, professor do mesmo ofício e poeta. “Cefalópode” se encontra na sua mais recente obra, Couraça.
Mergulhando no cefalópode
cefalópode
leio que o polvo gigante é silencioso, fluindo sem ossos em noite profunda; sem corpo: cabeça e tentáculos só. hectocótilo, imóvel, seu sexo; e comer, um plano de lentas ventosas: alcança, então prende, consome e se move. produz uma tinta e escreve com ela ilegíveis arabescos no oceano, água que os esquece assim que impressos [se diz: rapida scribere oportet aqua] na melancólica tinta que o camufla. também os zoólogos comem sua carne? – imenso, mas sem corpo, o mole covarde escreve apenas quando foge ao que não sabe. pegajoso, e o que expele suja o azul.
Os seis primeiros versos têm um desenvolvimento lento e helicoidal, quase a imitar os movimentos aquáticos tentaculares do polvo. Até esse ponto, o ritmo é de lentidão, marcado pelos sons consonantais surdos, condizentes com o mover-se silencioso do animal.
Os nove versos seguintes assumem ritmo diferente. É que trazem a ideia de efemeridade do registro com tinta: a escrita que só se faz na fuga. E essa é uma escrita frustrada, já que a água rapidamente a apaga.
A efemeridade do polvo e do amor
A escrita do polvo criado por Dirceu Villa é efêmera como as palavras de uma mulher apaixonada ao amante, retomando os versos romanos de Cátulo “rapida scribere oportet aqua” (escrever na água [que corre] veloz). A efemeridade do registro que a tinta do cefalópode aplica no azul é a mesma das juras de amor que uma mulher faz ao amante, dispersadas pelo vento e pela água.
Observando o animal que somos
Assim, o exercício poético feito através do polvo é o deslocamento da visão do homem para a visão do animal. E isso possibilita uma maneira de encontrar a si próprio.
Portanto, traçar essa subjetividade animal é também compreender a própria subjetividade do homem. É que o homem é outro animal. E isso ajuda a retomar o assombro de ver um bicho pela primeira vez.
Referência
VILLA, Dirceu. Couraça. São Paulo: Laranja original, 2020