A concepção de que clássico é proporcional ao moderno é enunciada por T. S. Eliot, bem como Borges.

A concepção de que clássico é proporcional ao moderno é enunciada por T. S. Eliot no ensaio intitulado Tradição e Talento individual (1917), onde a conceituação em torno do termo Tradição é subvertida, superando o senso comum deste, fazendo emergir problemáticas de caráter teórico-literário. Esta é amplamente investigada no ensaio de J. L. Borges, Kafka e seus precursores (1952). O escrito argentino também parte da prerrogativa de Eliot.

A citação exposta sutilmente no filme de Godard, quando Odile (Anna Karina) reproduz Eliot e fala: “Tudo o que é novo é, portanto, automaticamente tradicional’’, emerge indagações ante a tal esbravejo. Como é possível uma obra ser inovadora e concomitantemente tradicional? E parafraseando Bergman: a tradição e o novo estão dolorosamente ligados?
O escritor inglês desconstrói a estruturação em torno da contradição equivocada que impõem um isolamento massacrante dos termos, pois para se aproximar de uma obra é imprescindível adotar a dialética que abarque a complexidade do fazer literário. A tradição não está situada na permanência cristalizada de uma época por geração em geração, quebrando paradigmas, estabelecendo rupturas através de algum gênio original que oferece novo fôlego à arte, mas na eterna transformação de perspectivas pela inserção da novidade e invocação dos mortos na literariedade sucessora. Ou seja: consiste na atualidade do passado. Tomando a literatura em sua totalidade, a existência dela é simultânea. Assim, diz Eliot:
‘’Um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda literatura européia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência e constituem uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional’’.
Essa afirmação é reforçada, de certa forma, por Borges quando fala, em seu ensaio, do escritor inglês R. Browning (meados do século XIX) e de Kafka. Ao colocar em voga o poema Fears and Scruples (Browning) afirma ser este a antevisão do sustentáculo de Kafka. Todavia, o escritor tcheco não é simplesmente seu sucessor, mas a luz que enaltece e altera a compreensão do seu precursor. Cai por terra a sistematização hierárquica das obras. A tradição, portanto, é impulsionada, é fundamentada.
Aparece então Roberto Piva e seu Paranoia (1963). Com o recurso da intertextualidade, intensifica-se a clareza ante a conjugação entre tradição e modernidade, já que Piva, ao reverenciar, por exemplo, o poeta Jorge de Lima, modifica a apreensão deste, relendo-o pela criação do poema Jorge de Lima, panfletário do Caos:
Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima
enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente
na minha memória devorada pelo azul
eu soube decifrar os teus jogos noturnos
indisfarçável entre as flores
uníssonos em tua cabeça de prata e plantas ampliadas
como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca
palpita nos bulevares oxidados pela névoa
uma constelação de cinza esboroa-se na contemplação inconsútil
de tua túnica
e um milhão de vaga-lumes trazendo estranhas tatuagens no ventre
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade
é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado
querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve
estar com um talismã nos lábios de todos os meninos

Jorge de Lima foi um filho negligenciado das letras brasileiras. A mediação de Piva retira de uma espécie de ostracismo o poeta que não sustenta classificação e o recoloca no tempo, resgatando e readaptando a poesia à turbulência da pauliceia dos anos 60. Piva evoca principalmente as obras A Túnica Inconsútil (1938) e Tempo e Eternidade (1935), tendo como fio condutor a estruturação do poema-mor do poeta alagoano Invenção de Orfeu (1952). Nesta obra, Jorge de Lima buscou n’A Divina Comédia sua mola propulsora de constituição e constituinte.
Por Roberto Piva ter sido um leitor faminto, devorando dos canônicos aos ”subalternos” da literatura, cuspiu na cara da sociedade a marginalidade de todo poeta e alucinou as palavras como seu mestre Rimbaud. Sendo um rebelde enveredando pelo lado negro da força, foi um dos mais tradicionais poetas de sua geração. A retroalimentação foi o estandarte. É pela brasilidade de Mário de Andrade que também inventa um país, uma cidade, um microcosmo, ao ser inventado, tornando um itinerante à la Andrande. Como no poema No Parque Ibirapuera:
Nos gramados regulares do Parque Ibirapuera […]
A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade, regam
[minha
imaginação […]
o vento traz-me o teu rosto […].
É noite. E tudo é noite. […]
É noite nos teus poemas, Mário!
Onde anda agora a tua voz?
[…] devo
seguir contigo de mãos dadas noite adiante […]
Não pares nunca meu querido capitão-loucura
Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores
suspensa em teu ritmo
A escolha das obras Paranóia e Piazzas é pertinente porque a intertextualidade é transversal. Seja sutilmente, seja taxativamente, a riqueza de criações que fortifica e iluminado o passado ilumina-se é hiperbólica, presenteando a década de 60 com espelhos ferozes. Em Piazzas, Piva constitui um ritual xamânico (do qual era ‘adepto’) em torno do Marquês de Sade, no poema Homenagem ao Marquês de Sade, um dos poemas mais significativos deste livro:
O Marquês de Sade vai serpenteando menstruado por
máquinas & outras vísceras
imperador sobre-humano pedalando a Ursa maior no
tórax do Oceano
onde o crocodilo vira o pescoço & acorda a flor louca
cruzando a mente num suspiro
é aéreo o intestino acústico onde ele deita com o vasto
peixe da tristeza violentando os muros de sacarina
ele se ajoelha na laje cor do Tempo com o grito das
Minervas em seus olhos
o grande cu de fogo de artifício incha este espelho de
adolescentes com uma duna em casa mão
as feridas vegetais libertam os rochedos de carne
empilhadas na Catástrofe
um menino que passava comprimiu o dorso descabelado
da mãe uivando na janela
a fragata engraxada nos caminhos da sombrancelha
calcina
o chicote de ar do Marquês de Sade
no queixo das chaminés
falta ao mundo uma partitura ardente como o hímen
dos pesadelos
os edifícios crescem para que eu possa praticar amor
nos pavimentos
o Marquês de Sade pôs fogo nos ossos dos pianistas que
rachavam como batatas
ele avança com tesouras afiadas tomando as nuvens de
assalto
ele sopra um planador na direção de um corvo agonizante
ele me dilacera & me protege contra o surdo século de
quedas abstratas
Por fim, a obra na concepção da tradição literária é amplificadora. Eliot estabelece que:
” O presente consciente corresponde a um entediamento do passado de uma maneira e numa escala que a consciência que esse passado tem de si mesmo não pode mostrar”
E Borges:
”O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção de passado {…}”