A comida abre caminhos
A aula segue numa boa, o professor falando do tema, alunos tirando dúvidas ou apenas compartilhando uma interpretação do tema, tudo bem. Ou quase. Daí vem aquela sensação. Você olha o relógio no Smartphone, o livro da aula aberto na sua frente, o caderno de anotações rabiscados com sei lá o que, nãããão, tá cedo. Não está. É quando você se toca que não pode resistir a sua fome por muito tempo.
Se fosse só isso! Na aula que tenho segunda de manhã nunca é só isso. É mais fácil disciplinar a minha mente e criar vergonha na cara pra estudar o tema re-gu-lar-men-te com um mínimo de decência do que disciplinar minha fome. Café às seis, aula das oito ao meio-dia, acho que uma parte do meu cérebro funciona antes de uma pausa.
Sacio aquela dúvida daquele trecho lazarento do livro, daqueles que dão um chute e te põe no lugar como se falasse ‘há, achou que tava sacando o livro, pensa de novo seu idiota”. Alimento uma ideia para aquele ensaio que já sei ter que entregar daqui umas semanas, é, talvez não seja tão difícil, só preciso buscar os ingredientes adequados e misturar na dose correta pra não azedar a receita, vai dar certo! Depois que as atividades intelectuais começaram, hora de continuar com as estomacais.
Não conheço (projeto de) gente que aguente tanto tempo sem comida. Sou daquela categoria pouco nobre dos mortos de fome capazes de almoçar um boi, e ainda se esbaldar em outra comida só pra encher o buraco do dente, com direito a lanches entre desjejum, almoço e janta. Até aí tudo bem, não sou o único que anda com uma versão portátil do supermercado dentro da mochila – e isso não é exclusividade de gente esfomeada. O problema é que quando pego algo da minha mochila pra comer, sempre acho que tem alguém olhando pra mim.
É horrível! A aula segue de boa, você anota uma palavra chave no caderno, grifa outras dez no livro, tá no meio do povo, mas abre um pacote de bolacha ou uma barra de cereal. Pelo menos um par de olhos vai virar pra você, furando a montanha criada involuntariamente pelos volumosos livros em cima da carteira. Pode até ser que te deem um sinal de cumplicidade e, em sinal de muda compreensão, quem te olhe vasculhe a própria bagagem em busca da comida perdida, e depois você nota que as mesas dos seus colegas estão com restos de maçã, pacotes vazios de barras de cereais, um guardanapo rasgado ou copos, pois muita gente procura uma cantina pra chamar de sua no intervalo e sem querer anuncia que se nutre de sangue postiço (vulgo café) quando você nota aquela coleção de copos plásticos ou de isopor nas mesas alheias.
Nesses momentos até consigo me sentir normal e incluso numa sociedade que se alimenta – e bem, quero acreditar. É quase um pacto não falado, pois todos estão ocupados: a mão direita virando a página do estudo e a esquerda segurando aquele salgado tira-gosto. Ou dá um tempo no livro e todo mundo fica só no lanche mesmo. A comida abre caminhos, desde a silenciosa compreensão do ritmo alheio na banca da esquina – um minuto comendo faz milagres – ou aquele gole de café necessário pra manter o resto do corpo funcionando. Mas a bizarra sensação de que alguém está olhando pra minha comida persiste.
É você?