Conto: Teu jeito de ser sempre janeiro

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Ilustração de Guilherme de Souza

Marília, algo em ti me faz muito feliz, fico tentando descobrir o quê. Não sei, deve ser esse teu jeito certo de ser sempre tão triste. Chega uma hora dessas e eu só penso em teu nome, e o repito em voz alta como se isso bastasse pra acelerar as horas e amanhecer logo o dia. É que eu sei que amanhã eu te encontro. É que eu sei que em ti eu me perco. É que são muitas as curvas e eu nunca atravessei por essa tua estrada. Marília, deve ser essa tua calma. Que balança sem querer os dias e que insiste em me perturbar. Nome de mulher, Marília, é esse o maior delírio dos homens. Sibilar todas as tuas sílabas, degustar cada uma das tuas letras. É com isso que a gente soa frio e sente tremer de cabeça em cabeça. Sabe, é a maneira como me bastam tuas consoantes. Como me apertam tuas vogais. Os teus fonemas, Marília. É como tu me explode e me escorrega pela boca. Como se embaraça em meu peito e sai rouca na menor abertura dos lábios. É como tu me acentua. Inquieta, como vai e vem sem que nenhuma outra coisa no mundo perceba. Chega essa hora e eu repito seu nome: uma prece cantada, um mantra, uma canção de ninar, serenata de amor. Marília no céu e Marília na terra. Razão pra os quatro mares. Por quem pulo, todos os anos, as sete ondas. E jogo flores todo dia 31 de dezembro, vestido de branco. Por quem guardo os caroços das uvas, das romãs. Por quem não passo por debaixo escadas e nem me visto de preto em sexta-feira. Por quem não perco a fé no mundo. Marília, minha santa de colo farto, banquete dourado debaixo de sol. Marília, minha sorte. Qualquer risco de te perder vive encostado onde repousa sonolenta a morte. É te vivendo que eu vivo: não desvie os teus olhos.

Quando te vi sorrir pela primeira vez eu soube que o mundo, na verdade, tinha o tamanho de uma caixa de fósforos. As tuas pernas. Me derreto por elas. Teu jeito de ser sempre janeiro, essa tua vontade de recomeçar do zero. Teu sorriso a esperar sempre o carnaval. Teus sábados de sol. Teu mar.

Queria ter te conhecido em outro tempo. Mesmo sabendo que o tempo em que as coisas acontecem deveria ser o tempo certo. Nunca joguei tarô, Marília, nem deixei que lessem minhas linhas, nem as das mãos, nem do que escrevo. Mas eu acredito no destino, sabe. Eu acredito no tempo. E mesmo de vez em quando perdendo o rumo, mesmo já tendo atravessado mais da metade do caminho, eu ainda acredito na vida. Queria ter te conhecido em outro tempo. Outro ano. Outra época. Que por detrás da flacidez, o corpo é rígido. Que antes a pele era grudada na carne e a carne era grudada no osso e era tudo em cima e era tudo duro, mas se amolecia a qualquer toque. O toque, Marília, eu perdi a capacidade de sabê-lo. Quando vem e por onde. E de que maneira. Se é cafuné ou se é um tapa. Marília, olha bem agora pra minha cara. Esse rosto já não é meu. Ele cai, quase se desmancha pelos lados. Mas é duro. Duro como meu peito. É que a vida deixa os movimentos circulares de dentro relógios nos endurecerem de dentro pra fora.

Queria ser mais forte. Tu sabe, Marília, que já não te aguento mais nos braços. Tu sabe que tomo remédio pra dores nas costas. Que já chorei mais do que deveria. Tu sabe, Marília, que a pior coisa que pode acontecer na vida, é a vida acontecer pra gente.

Chega essa hora e eu não deixo de repetir seu nome. E se me falta saliva, eu continuo te escrevendo no guardanapo. Não é só pelo drama, mas o amor é um tipo de morte. Eu me morro por tu. Eu me montanha. Eu me topo do mundo. Eu quase me encosto no céu. E é por sua causa. É por sua causa…

Que eu caio, de repente.

E é de asfalto o mundo. É de pedra. É de concreto.

Tuas sílabas, Marília, tuas letras…a maneira como tu me escorrega até o estômago e eu sem saber se te acho doce ou azeda.

Que saudade dela, Marília. E que saudade de mim. Foi amor. Eu sei, porque é essa uma das coisas que o amor faz, faz com que a saudade dela me traga uma saudade de mim. Que saudade da vida, Marília, dos anos. Que saudade de ti. E de quem eu fui. Nos braços dela. De quem eu era. De quem era ela. De quando eu era dela. De quando eu era.

Marília, depois dela só tu. Depois de ti, de tu, de tudo, mais nada.

Eu quero te descrever cada uma das flores, te contar como me lembro delas. Eu quero te falar do quintal dos meus avós maternos, de como eu amava um pedaço de bolo de fubá quentinho depois de rolar na lama a tarde inteira. Eu quero te descrever os dias sentados à beira do Rio São Francisco. Marília, eu quero que tu veja tudo que eu vi.

Meu amor por Marília, como um floco de neve, era de esperar que fosse muito mais que água. Muito mais que uma quase solidez, uma quase liquidez, insossa. Vindo do céu, meu amor por Marília, como um floco de neve, era de esperar que tivesse ao menos um pouco de carne. Ao menos um pouco de sabor. Ao menos um pouco de pulso. Meu amor por Marília, como um floco de neve, era de esperar que não se tratasse de uma dessas decepções sustentadas pelos sonhos da infância. Meu amor por Marília, como um floco de neve, me faz tremer de frio só de vê-la.

Marília, tu não tem ideia de como o amor dói, porque tu não tem ideia da forma como o corpo responde à ausência dele. Marília, a ausência do amor, no corpo amado, é uma coisa que realmente alcança a alma. O desamor, ele desarma qualquer um. Eu descobri da pior maneira. Achando que o mundo esperaria eu dar minhas voltas pra que depois desse as dele. Eu deixei que o tempo percorresse por vias e artérias, ininterrupto. Eu descobri partindo, e olhando pra ela depois de todos aqueles anos. Eu descobri que era preciso partir pra saber voltar. E pior do que olhar pra ela depois de todos aqueles anos e constatar o tanto que havia mudado, foi olhar pra ela, depois de todos aqueles anos, e constatar que ela havia me mudado dali, de onde eu era nela.

Eu descobri que o mundo dá suas próprias voltas. E que nem tudo tem sua própria volta no mundo.

Eu peço a Deus todas as noites pra poder te assistir entrando no ônibus. É tarde. Eu sei só pelo barulho dos carros lá fora. Fica, não me deixe, não me abandone. Não precisa voltar, é só não ir. Marília, vá. Não sei se hoje chove, mas vá, antes que chova. Antes que eu chore. Marília, esses comprimidos me deixam louco.

Quantos amores, Marília, serão os últimos até que algum seja verdadeiro? Quantos amores, Marília, até a gente aprender a amar? Estou ficando velho. E cansado. E ainda mais velho, isso a cada nova palavra. E rarefeito. E fraco.

Marília, será se hoje o céu chora? Eu juro, era feliz até logo agora. Mas de repente, me deu uma vontade de escoar pelo ralo..

Marília, tu é mulher pra jantar todo dia. Pra comer com arroz, feijão e muita pimenta, lambendo os beiços, te deixando escapulir pela beira do prato, só pra pegar com os dentes. Marília, tu é mulher pra quem se escreve cartas enquanto expatriado, no meio da guerra. Mulher pra carregar foto na carteira, e beijar cheio de saudade. Marília, tu é mulher pra prender os olhos e o rabo de qualquer um. Pra comer de colher. Com as mãos. Pra se perder sem querer voltar. Pra apresentar aos pais. Entrar de braços dados na igreja. Deixar flores na janela. Pra esquecer do carnaval, do resto do mundo inteiro.

Marília, tu é mulher demais pro pouco de homem que sou. E se, Marília, se tu realmente existe como existe na minha imaginação, se tu realmente é a mulher que eu quero que seja. Marília, se tu realmente for – Marília, por favor, fique…

Marília, eu tô sozinho. E de repente me deu saudade da tua voz. De repente, no meio da manhã. E hoje, eu sabia, tu não viria. E horas depois, quase como piada, alguém disse teu nome. “Marília”, feito cuspe. Como o mundo deixa que te pronunciem assim?

Marília, todo dia deito pra dormir com tua ausência.

Eu quase não durmo, Marília. Eu quase quase quase não passo disso, de quase, uma possibilidade. Eu tô vivo, mas não me sinto. Eu vivo e todo dia morro, e desabo sem nem precisar de vento, sem nem precisar de chuva. Eu morro abaixo por qualquer coisa. Marília, ontem eu fui falar com o Zé. O Zé que tu não conhece. Eu fui falar teu nome. E o Zé que também não te conhecia. De repente, ele me disse, Marília, que queria dar rosto ao teu nome, que já te sentia bem próxima. Marília, eu quero te esconder do mundo. E eu nem te vejo. Marília, o amor consegue ser totalmente egoísta. Mas eu não consigo ser nada sem ele.

Essa fome, Marília, essa incompletude, tudo isso uma hora passa. O coração, um dia, desacelera, Marília. E o relógio passa a girar mais rápido que o mundo. E a gente sente vontade de puxar uma cadeira e sentar na varanda pra assistir a vida passar. Um dia o apetite diminui, Marília, um dia ele quase some.

Marília, se eu não te amasse, que mais na vida eu faria?

Marília, eles ainda te pronunciam como se tu não valesse um minuto a mais de salivação. Marília, eles te pronunciam sem antes te bochechar, sem nem mesmo te gargarejar. Eles te pronunciam como se tu fosse palavra, Marília. E palavra não vale nada!

Marília, te esconde do mundo!

Estava olhando pela janela e descobri que ele é feio. E que ele não te merece. Marília, te esconde aqui debaixo do lençol. Hoje eu tenho certeza de tudo, e mais tarde chove. E quando chover, Marília, me abrace forte. Que seu medo de trovão me dá medo que troveje.

A verdade, é que não sei por onde te amar, Marília. Estou todo do avesso. Não sei onde a gente se encosta. Não sei de que maneira te encontro. Tu sabe a maneira como quase sempre me escorrega. Me escapole pelas mãos. Feito sonho. Sem o doce do leite.

Não sei por onde te amo. Marília. Com as mãos, às vezes, eu não enxergo quase nada. E tu se afasta. E teu caminho é quase sempre o meu contrário. E às vezes, tu nem aparece. Às vezes tu nem me liga. Tu nem se importa quase sempre, né, Marília?

Tu nem se importando quase sempre e eu aqui, e eu aqui te amando pelas beiras. Pelo que me sobra de ti. Marília, tu sabe que é só abrir a porta e ir embora. Tu tanto sabe que quase sempre vai. Marília, por favor, sempre que for volte. E sempre que voltar finja que fica. A vida não é tão macia quanto parece…

Ar, mar, ilha. Quero me esquecer no meio da pista. Às duas horas da madrugada. Com tudo ao redor inundado. E só eu, o vento e a chuva. Tu pode me esperar lá do outro lado. Me busca. Preciso saber onde é que eu tô. Tu não volta, pelo que parece. Já que passa dia, volta dia. E tu nada. E nunca mais, nada mais me amanhece.

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