Em 1966, Gay Talese escreve Frank Sinatra has a cold, que se tornaria a reportagem mais famosa sobre o Blue Eyes. Sem entrevistar efetivamente Frank Sinatra, Talese traça um rico perfil do cantor por intermédio de depoimentos de personagens próximos a ele. A linguagem de Gay Talese anuncia um novo jornalismo, já evocado em 1965 por Pete Hamill em um artigo intitulado The New Journalism para a revista Nugget.
O artigo não foi publicado, mas o termo “novo jornalismo” passou a denominar o que escritores como Gay Talese, Jimmy Breslin, Tom Wolfe e tantos outros vinham fazendo em jornais e revistas na década de 1960 — dentre os periódicos, destaco The New Yorker e Esquire. A reportagem jornalística ganhava dimensão estética e suscitava novos questionamentos acerca dos conceitos objetividade e subjetividade e das fronteiras entre ficção e realidade; entretanto, tal linguagem, apesar de transgressora, não era inédita.
A própria expressão “novo jornalismo” remonta ao final do século XIX, quando foi cunhada pela primeira vez. Em 1887, o poeta e crítico britânico Matthew Arnold, no artigo Up to Easter, escreve sobre o Novo Jornalismo inventado, nas suas palavras, por um “inteligente e enérgico homem” (refere-se ao editor William Thomas Stead da Pall Mall Gazette). Ainda que teça alguns elogios ao gênero, exaltando suas qualidades ao se enfatizar o novo, a variedade, a habilidade, Arnold pontua, sobretudo, seus aspectos negativos, quando o acusa de prejudicial ao regime democrático por tomar como verdadeiras afirmações inverossímeis. Ele chega a nomear o “novo jornalismo” de feather-brained, que poderíamos traduzir para o português como “frívolo”.
Ao lado de W. T. Stead (1849-1912), Joseph Pulitzer (1847-1911) está entre os principais representantes do Novo Jornalismo do século XIX. Pulitzer comprou a The New York World (1860-1931) em 1883 e a manteve sob sua editoria até 1911. Em 1889, incumbiu a jornalista Nellie Bly (pseudônimo de Elisabeth Cochrane Seaman – 1864-1922) a seguir o percurso de Philleas Fogg, protagonista de Volta ao Mundo em 80 dias (1874) de Júlio Verne. A diferença: enquanto no livro o protagonista é um homem, a repórter é uma mulher e segue sozinha (diferente do livro) rumo a um itinerário que previa 75 dias, cinco dias a menos que no livro. Nellie Bly partiu de New Jersey a 14 de novembro de 1889. A viagem durou 72 dias e ocupou as páginas da edição de domingo do The World entre os dias 27 de Janeiro e 23 de fevereiro de 1890. O final do século XIX delineia este novo jornalismo, com características próprias, que muito o aproximam do literário.
A se falar deste novo jornalismo, é imperativo que se mencione o surgimento do “lide” — jargão jornalístico designado ao primeiro parágrafo de uma notícia que contém as principais informações, a responder as perguntas: quem, quando, onde, por que, como, 4 W (who, when, where, why) e 1 H (how). Durante a Guerra de Secessão Norte-Americana (1861-1865), os repórteres de guerra passaram a reservar as principais informações das notícias ao primeiro parágrafo, uma vez que estas eram transmitidas por telégrafos.
Gay Talese em uma marcha de protesto sobre os direitos civis, juntamente com a ativista feminista e Miss America 1951, Yolande Betbeze
Com o advento do lide, a objetividade ganha espaço nas redações norte-americanas, impondo uma linguagem mais técnica, com fórmulas pré-estabelecidas em manuais de redação. Tal formato é rechaçado por alguns dos jornalistas do final do século XIX, que se empenham em alcançar um jornalismo singular, subjetivo, a responder muito mais do que cinco perguntas.
Qualquer semelhança com os “novos jornalistas” da década de 1960 não é mera coincidência. Thomas B. Connery em seu ensaio A Third Way to Tell the Story: American Literary Journalism at the Turn of the Century cita três exemplos significativos de jornalismo literário que, penso eu, se aproximam muito do new journalism de 1960: Stephen Crane e seus artigos geralmente chamados de “The New York Sketches”; Lincoln Steffens, editor do New York Commercial Advertiser (1831- 1889); e Hutchins Hapgood, um interessante jornalista de New York Advertiser. A propósito, New York Commercial Advertiser corresponde à essência do new journalism; elucido minha afirmação com o conselho de Lincoln Steffens ao repórter, romancista e editor Abraham Cahan:
Here, Cahan, is a report that a man has murdered his wife, a rather, bloody, hacked-up crime … There is a story in it. The man loved that woman well enough once to marry her, and now he has hated her enough to cut her all to pieces. If you can fnd out just what happened between that wedding and this murder, you will have a novel for yourself and a short story for me. Go on now, take your time, and get this tragedy, as a tragedy.
Eis, Cahan, a notícia de um homem que assassina sua mulher, um crime sangrento em que ela é esquartejada. Existe uma estória nesta notícia. O homem amava aquela mulher o suficiente para casar-se, e agora a odeia o suficiente para cortá-la em pedacinhos. Se você descobrir o que aconteceu entre o casamento e o assassinato terá um romance para você e um conto para mim. Vá em frente com a estória, durante o tempo que quiser, e consiga esta tragédia, qual uma tragédia. (Tradução Livre)
Lincoln Steffens procurou fazer um novo tipo de jornalismo diário, “pessoal, literário e imediato”, nas palavras de Connery, a noticiar a cidade de tal maneira que o leitor pudesse “visualizar” as pessoas e os eventos. Steffens aconselhava os repórteres a não pretenderem ganhar dos outros jornais ao obter a notícia, mas sim ao apresentá-la.
O jornalismo de Hutchins Hapgood também se assemelha bastante ao jornalismo dos anos de 1960. Hapgood argumentava que a literatura ganharia nova vida se lançasse mão de uma ferramenta recorrente no jornal diário: a entrevista. Tom Wolfe teceria exatamente a mesma observação quase 70 depois, como veremos mais adiante.
Ademais, de acordo com Hapgood, os escritores deveriam escrever sobre pessoas e eventos reais, e, ainda, passar a conviver com estes, boa parte do tempo. O que se chamaria, posteriormente, de jornalismo de imersão, técnica muito utilizada pelos “novos jornalistas” do século XX, sobretudo, Gay Talese.
Já Stephen Crane produziu numerosos artigos comumente chamados de The New York Sketches, em sua maioria para New York Press em 1894. Nestes, Crane utilizava técnicas literárias, incluindo contraste; diálogo; descrição detalhada da cena; uso de metáfora e ironia. Difícil pensar nos sketches de Crane sem associá-los ao Nova Iorque: a jornada de um serendipitoso (tradução de Luciano Vieira Machado) de Gay Talese, publicado primeiramente na revista Esquire, e, logo em seguida, em livro (1961). Mas há muito mais a se comparar, quando da análise dos dois períodos.
Os Lumpemproletários
O livro seria a princípio um artigo para a New Yorker, sobre os efeitos causados pelo assassinato da família Clutter, em 1959, em uma pequena e isolada comunidade. De acordo com Shaw, o editor da revista, Capote “escreveria sobre a cidadezinha e a família — como teria sido a vida dela.”, ao que o editor acreditou que “daria um longo e maravilhoso artigo”, mas, a pesquisa se aprofundara de tal maneira a ponto de exigir muito mais do que um artigo. E, em junho de 1965, Capote concluiu sua grande obra, A sangue frio. No que tange A sangue frio, convém rememorarmos algumas considerações do biógrafo de Capote, Gerald Clark, concernentes à definição romance de não-ficção, como Truman denominava seu trabalho:
Durante muito tempo Truman sustentou que a não ficção poderia ser tão artística e atraente quanto a ficção. Segundo ele, a única razão de em geral ser considerada uma espécie inferior de literatura era ser escrita quase sempre por jornalistas que não estavam equipados para explorá-la. Somente um escritor “com total controle das técnicas ficcionais” poderia conferir a ela o status de arte. “O jornalismo se move no plano horizontal, conta as histórias; a ficção — a boa ficção — move-se verticalmente, mergulha funda nas personagens e nos fatos. Ao tratar um fato real com essas técnicas (o que o jornalista não pode fazer até aprender a escrever), é possível fazer essa síntese”, disse ele. Porque os bons ficcionistas desdenhavam a reportagem e os repórteres não aprenderam a escrever a boa ficção é que essa síntese ainda não tinha sido feita, e a não ficção nunca realizara seu potencial. Era o mármore bruto à espera do escultor, a palita aguardando o artista. Truman insistia ser o primeiro a mostrar o que é possível fazer com esse material tão depreciado. A Sangue Frio era um novo tipo de literatura, um romance de não ficção.
As convicções de Capote acerca da não ficção são corroboradas por Tom Wolfe, nos ensaios sobre o new journalism — reunidos na coletânea The new journalism, de 1972 — quando narra a recepção do novo jornalismo entre jornalistas e literatos:
A reportagem realmente estilosa era algo que ninguém sabia lidar, uma vez que ninguém costumava pensar que a reportagem tinha uma dimensão estética. […] Não teria lido a matéria de Joe Louis se não fosse escrita por Gay Talese. […] O que ele havia escrito para a Esquire era tão melhor que aquilo que fazia (ou que deixavam de fazer) no Times, que tive de conferir o que estava acontecendo. Não muito depois, Jimmy Breslin começou a escrever uma extraordinária coluna local em meu próprio jornal, o Herald Tribune. Breslin veio para o Herald Tribune em 1963. […] De qualquer modo, Breslin fez uma descoberta revolucionária. Descobriu que era possível um colunista efetivamente sair do prédio, ir para a rua e fazer uma reportagem com suas próprias e legítimas pernas […] […] Breslin trabalhava como um mouro. Passava o dia inteiro fora, cobrindo um acontecimento, voltava às quatro e pouco da tarde, sentava a uma mesa no meio da sala local. […] O trabalho de Breslin levantou certo ressentimento vago entre jornalistas como entre literatos durante os dois primeiros anos de sua coluna — vago porque nunca entenderam inteiramente o que ele estava fazendo … só que, de algum jeito perverso e barateador, a produção do sujeito era literária.
Além de exaltar a novidade do trabalho do colunista Limmy Breslin, Tom Wolfe, assim como Capote, avalia uma qualidade estética na reportagem. Porém, o autor de Radical chique, como os demais jornalistas literários, não menospreza o trabalho do repórter, mas sim, reivindica um novo jornalismo, diverso do que se fazia então, cingido pelos manuais de redação, pelo “jornalismo bege”, nas palavras de Joaquim Ferreira dos Santos[1]. O principal alvo de Wolfe é o colunista do Times Walter Lippmann:
[…] O arquétipo do colunista de jornal era Walter Lippmann. Durante 35 anos, Lippmann parecia não fazer nada além de ingerir o Times todas as manhãs, ruminá-lo poderosamente durante alguns dias e depois metodicamente defecá-lo na forma de uma gota de papa na testa de diversas centenas de milhares de leitores de outros jornais nos dias seguintes.
Contra este tipo de jornalismo e de jornalista, surgem os escritores apelidados ironicamente por Wolfe de lumpemproletários:
Seymor Krim me conta que ouviu essa expressão ser usada pela primeira vez em 1965, quando era editor do Nugget e Pete Hamil o chamou para dizer que queria um artigo chamado “O Novo Jornalismo” sobre pessoas como Jimmy Breslin e Gay Talese. […] […] Na época, meados dos anos 60, o que aconteceu foi que, de repente, sabia-se que havia uma espécie de excitação artística no Jornalismo, e isso em si já era uma novidade. […] A classe baixa eram os jornalistas, os quais ficavam tão embaixo na estrutura que mal eram notados. Eram tidos sobretudo como trabalhadores diaristas que desencadeavam informações para escritores de maior sensibilidade fazerem melhor uso delas. Quanto às pessoas que escreviam para as revistas populares […] e os suplementos de domingo, os escritores chamados de freelancers, a não ser por algumas raras pessoas do The New Yorker, considerava-se que nem estavam no páreo. Eram os lumpemproletários. E, de repente, em meados dos anos 60, aparece um bando desses lumpemproletários, nada mais nada menos, um bando de escritores de revistas de papel brilhante e suplementos de domingo sem credencial literária alguma na maioria dos casos — só que usando todas as técnicas do romancista, até as mais sofisticadas — e ainda por cima se permitindo os insights dos homens de letras — e, ao mesmo tempo, fazendo ainda suas reportagens pedestres, “cavadoras”, prostituídas, malditas reportagens do tipo vestiário — assumindo todos esses papéis ao mesmo tempo — em outras palavras, ignorando a divisão de classes literárias que passou quase um século se constituindo.
Afiado ao descrever os literatos de então, Wolfe critica ferozmente os romancistas da década de 40, 50 até o início dos anos 60, quando o romance não era uma mera forma literária, mas sim um “fenômeno psicológico”, “uma febre cortical”, que fazia parte da “Introdução geral à psicanálise, em algum ponto entre narcisismo e neurose obsessiva”. Para ele, o romance, nos anos 50, passara a ser “um torneio nacional”, e não havia lugar para jornalistas, a menos que ali estivesse no papel de feitura romancista ou simples “cortesão dos grandes”. Tom Wolfe chega a comparar os primeiros dias do romance aos primeiros dias do novo jornalismo, uma vez que em ambos surge um “grupo de escritores trabalhando um gênero considerado classe-baixa […] que descobrem as alegrias do realismo detalhado e seus estranhos poderes”.
Os escritores de revista, assim como os primeiros romancistas, aprenderam por tentativa e erro algo que desde então tem sido demonstrado em estudos acadêmicos: especificamente, que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer outro recurso. Ele também estabelece e define o personagem mais depressa e com mais eficiência do que qualquer outro recurso. […] Os jornalistas trabalhavam o diálogo em sua mais plena e mais completamente reveladora forma no mesmo momento em que os romancistas o eliminavam, usando o diálogo de maneira cada vez mais crítica, estranha e curiosamente abstrata.
Contudo, ele rejeita os romancistas que abandonaram o realismo social, pois abandonaram destarte “certas técnicas vitais”. Por essa razão, ele afirma assertivamente que em 1969 os “lumpemproletários” haviam conquistado uma outra vantagem técnica sobre os romancistas. Já no prefácio, o autor ataca:
[…] qualquer um que tente, na ficção ou na não ficção, melhorar a técnica literária abandonando o realismo social será como um engenheiro que tenta melhorar a tecnologia das máquinas abandonando a eletricidade. […] Devo confessar que o estado retrógrado da ficção contemporânea facilitou muito a formulação da questão principal deste livro: que a literatura mais importante escrita hoje na América é de não ficção, com a forma que foi, embora sem elegância, rotulada de Novo Jornalismo.
É indubitável o sarcasmo de Tom Wolfe em seus ensaios com relação ao que se fazia antes do new journalism da década de 1960, tanto no jornalismo quanto na literatura. Seu deboche denota o desejo de mudança. O mesmo almejado pelos jornalistas do final do século XIX: the new journalism. Por outro lado, interessante notar que Gay Talese sempre resistiu a ser chamado de “novo jornalista”, isso porque muitos “novos jornalistas”, na sua concepção, não faziam pesquisas, o que chamava de legwork, algo já reivindicado preteritamente por Stephen Crane.
Na reportagem com Frank Sinatra, por exemplo, Talese entrevistou mais de 100 pessoas. Escreveu um artigo de 55 páginas baseado nas duzentas páginas de anotações. O que me chama a atenção no artigo é o próprio gênero entrevista, ele faz um perfil de Frank Sinatra sem entrevistá-lo. Uma transgressão fascinante.
Talese nega também o que Matthew Arnold chamou de jornalismo feather-brained¸ ao pontuar a função do jornalista, que, diferentemente do escritor, deve ter acuidade, exatidão verificável, ou seja, deve ser possível verificar-se tudo que é escrito. Ao que classifico o gênero jornalismo literário como uma terceira escrita, diferente do jornalismo e também da literatura.
Tom Wolfe (década de 60). Foto de Jack Robinson.
Curiosidade: New Journalism e Literary Journalism
New journalism ou “novo jornalismo” é um tipo específico de jornalismo literário emerso em dois tempos: final do século XIX e meados do século XX. Ao passo que o gênero Jornalismo Literário existe, segundo os historiadores do jornalismo, desde Daniel Defoe (1660-1731), autor de Robinson Crusoé, no início do século XVIII. Seu artigo The Storm (A Tempestade), sobre a grande tempestade que atingiu Londres durante uma semana em novembro de 1703 foi pioneiro no trabalho jornalístico e científico.
No entanto, a expressão literary journalism, jornalismo literário, com o significado que conhecemos hoje, existe apenas desde 1937, quando Edwin H. Ford, professor do Departamento de Jornalismo da Universidade de Minnesota, publicou A Bibliography of Literary Journalism in America. Ainda que o termo tenha sido utilizado antes, Ford parece ser o primeiro a usar literary journalism com seu significado atual, enquanto uma forma de jornalismo e não como produto do jornalista que escreve sobre literatura. Segundo ele, “literary journalism como concebido para o propósito desta bibliografia deve ser definido como escrita pertencente à zona crepuscular que divide a literatura do jornalismo.” Não por acaso, para Gay Talese “escrever é como dirigir um caminhão à noite, sem farol, perder o caminho e passar uma década em um buraco.”
BIBLIOGRAFIA
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TALESE, Gay. Fama e Anonimato. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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____ The New Journalism. London: Pan Books, 1973