“Tintins, tilintos, laldas e loas” ao encantado Guimarães Rosa

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  “Falava-se de uma ternura perfeita, ainda nem existente; o bem querer sem descrença. Enquanto isso, o tempo, como sempre, fingia que passava. As velhinhas pactuavam a alegria de penar e mesmo abreviadas irem-se- a fito de que neste sertão vingassem ao menos uma vez a graça e o encanto.” Arroio das Antas, Tutaméia.

Hoje, faz 46 anos que Guimarães Rosa ficou “encantado” e não há como não lembrá-lo, seja em data de partida ou, aos moldes rosianos, de renascimento.  Muito já se escreveu sobre o autor e sua obra. Nós, os leitores, sabemos, porém, que graças à sua grandiosidade e riqueza narrativa, todas as críticas, todas as interpretações já feitas e as porvir não esgotam as incessantes possibilidades de apreciações  de (re)descobrimentos deste “Ser Tão feiticeiro” das palavras.

Romance de primeira ordem, “Grande Sertão: Veredas” causou espanto no meio literário brasileiro. A obra é inovadora sobre vários aspectos: prosa altamente poética, linguagem que nos remete à oralidade, ao regionalismo (Sertão Mineiro) e, mesmo assim, um romance indiscutivelmente Universal, tamanha sua genialidade linguística e metafísica. Sobre o processo de criação de Grande Sertão:Veredas, em carta enviada a Edoardo Bizzani,  Guimarães Rosa diz:

Você já notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essência são anti-intelectuais- defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração, sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff- com Cristo, principalmente. […] quando escrevi GSV, não foi partindo de pressupostos intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino cerebral deliberado. Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos, trabalho quase mediúnico e elaboração subconsciente.
Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse traduzindo de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no plano das ideias, dos arquétipos, por exemplo. (páginas 58- 63)

No ensaio “JGR- O Mestre do Amálgama Lírico Narrativo”, Kathrin Rosenfield chama a atenção às “ciladas” que Guimarães prega nos críticos ao definir sua verve criativa. Segundo a autora, quando Guimarães Rosa define sua produção literária como algo, digamos, “psicografado”, acaba favorecendo, aos críticos mais desavisados, que se faça uma análise esotérica de sua obra, guiando-os a um caminho  anti-intelectual. Kathrin ressalta que além das fontes arquetípicas, tais quais os livros sagrados mencionados pelo escritor, há fortes indícios em sua narrativa de outras heranças de leitura de Rosa:

No sertão rosiano, não são raros os timbres da exaltação de Novalis e Rilke, mas eles são maravilhosamente entrelaçados ao ritmo e às cadências da fala oral e do imaginário popular que aparecem normais e naturais esses prodigiosos amálgamas. O mesmo acontece com os motivos e temas consagrados pelo ensaísmo brasileiro – a preguiça, a luxúria, a saudade, a miscigenação brasileiras, que aparecem surgir da própria ruminação dos personagens e das coisas do Sertão. (página 13)

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Guimarães Rosa fotografado por Eugenio Silva para a revista “O Cruzeiro”, durante a viagem de dez dias pelo sertão, em 1952.

Decisivamente, em nada tais constatações anulam o talento do autor, ao contrário, sua força inventiva ganha destaque. Rosa consegue transformar sua tradição de leitura, através de Grande Sertão: Veredas, em algo totalmente vanguardista e espantoso. Em História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi escreve:

 […]começou-se a ver que a grande novidade do romance vinha de uma alteração profunda no modo de enfrentar a palavra. Para G.R., como para os mestres da prosa moderna, a palavra é sempre um feixe de significações: mas ela o é em um grau eminente de intensidade se comparada aos códigos convencionais de prosa. Além de referente semântico, o signo estético é portador de sons e formas e desvendam, fenomênicamente, as relações íntimas entre o significante e o significado.
Toda voltada para as forças virtuais da linguagem, a escritura de Guimarães Rosa procede abolindo intencionalmente as fronteiras entre narrativa e lírica, distinção batida e didática, que se tornou, porém, de uso embaraçante para a abordagem do romance moderno. Grande Sertão: Veredas e as novelas de Corpo de Baile incluem e revitalizam recursos da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopeias, rimas internas, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamento de sintaxe, vocabulário insólito, arcaico e de todo neológico, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos, coralidade.” (páginas 482-483)

É necessário comentar que essa expressão poética, sobre a qual Bosi se refere, não está presente apenas em Grande Sertão:Veredas ou em Corpo de Baile. Quase toda narrativa rosiana é esquadrinhada por elementos poéticos. Lembremos que Guimarães Rosa é autor de apenas um romance, as demais narrativas são novelas e contos. Livros como Sagarana (1946), Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia (1967) estão repletos de lirismo. Ouso dizer que seu único livro de poemas, “Magma”, publicado em 1936, é o menos poético de seus livros, embora tenha lhe rendido, no mesmo ano, um prêmio da Academia Brasileira de Letras. O próprio autor não o aprovava, tanto que foi republicado somente em 1997. Sobre Magma, o autor relata:

Escrevi um livro não muito pequeno de poemas, que até foi elogiado. Passaram-se quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes. (ENRICO LIPPOLIS)

Se, nas palavras do autor, seus poemas eram pouco convincentes, Rosa foi e é, além de excepcional romancista, um contista nato. Já em Sagarana, verificam-se apontamentos do que seria Grande Sertão: Veredas e, posteriormente, em Primeiras Estórias e Tutaméia há uma vasta elaboração de linguagem, neologismos; a temática de memórias, pactos, reflexões existenciais, a travessia do homem telúrico pelo sertão de Minas, limiar narrativo entre real e surreal, só para citar alguns aspectos.

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Originais com anotações do escritor

Incontestável dizer que Guimarães Rosa é um dos maiores representantes em língua portuguesa de histórias curtas, isto é, do conto. Para o leitor, apaixonado pela narrativa do escritor, todos os livros de contos de João Guimarães são merecedores de considerações, sendo que escolher apenas um é tarefa difícil.

Talvez, por ser sua última publicação em vida e, também, por ser uma obra ainda pouco lida, se comparada a outras de Guimarães, Tutaméia seja uma boa escolha. Regina da Costa da Silveira, em seu ensaio “A Propósito dos Trinta Anos de Tutaméia”, comenta que o livro é pouco estudado devido a alguns motivos. Ela diz:

Dentre as causas de o livro ser pouco estudado, estaria a presença incomum de quatro prefácios, de dois índices e de um glossário que contém inclusive palavras não utilizadas no texto. No referido glossário, encontramos a palavra Tutaméia e seus significados: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; meã omnia.(páginas 4-5)

Tutaméia é um desafio ao leitor, a começar pelos quatro prefácios mencionados por Regina. São eles: “Aletria e hermenêutica”, “Hipotrélico”, “Nós, os temulentos” e “Sobre as escova e a dúvida”. É preciso destacar que esses prefácios não são sequenciais. Na segunda edição, de 1968, pela José Olympio, temos a seguinte disposição: o primeiro prefácio aparece de forma tradicional, antes dos contos, na página 3; o segundo aparece quase na metade do livro, na página 64; o terceiro surge na página 101 e o quarto, quase ao fim do livro, na página 146.

Só a leitura e análise desses prefácios já renderia uma tese, tamanha acrescente de informações que o leitor obtém deles. Em Aletria e hermenêutica, o autor diz: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História.” No Hipotrélico, lemos: “O termo é novo, de impesquisada origem e ainda sem definição que lhe apanhe em todas as pétalas o significado”. Já em Nós, os Temulentos, lemos como frase inicial:Entendem os filósofos que nosso conflito essencial e drama talvez único seja mesmo o estar-no-mundo.” Por último, em Sobre a Escova e a Dúvida, há: “ Tudo tinha de destruir-se, para dar espaço ao mundo novo aclássico, por perfeito.”

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O contato com os costumes do sertão foi essencial para a criação literária de Guimarães Rosa.

Ainda sobre os prefácios de Tutaméia, livro que o crítico considera como a radicalização do desejo de transcendência de tempo e espaço, que está presente em Grande Sertão Veredas, Bosi declara:

 Nos últimos livros o processo radicaliza-se e pede uma interpretação, que os prefácios amaneirados de Tutaméia entendem dar uma linha irracionalista: Guimarães Rosa aí escolhe abertamente a leitura que Dante chamava anagógica ou supra-sensível. Dê-se ou não importância às explicações do autor, o fato é que toda a sua obra nos põe em face do mito como forma de pensar e de dizer atemporal e, na medida em que leva a transformações bruscas, alógica. Volta-se ao ponto de partida. A obra de Guimarães Rosa é um desafio à narração convencional porque os seus processos mais constantes pertencem às esferas do poético e do mítico. Para entendê-la em toda a sua riqueza é preciso repensar essas dimensões da cultura, não in abstracto, mas tal como se articulam no mundo da linguagem. (página 487)

O leitor, ao tocar em Tutaméia, precisa estar preparado, pois se deparará com 40  pequenos e intensos contos. Sem contar toda a fortuna narrativa que nos faz “transcender”; a linguagem utilizada nas histórias apresenta incontáveis chistes, que são quase sempre neologismos do autor; e os provérbios invertidos. Estes recursos inovam a tradição e se abrem para novas apreciações. Eis alguns exemplos:

“O pior cego é aquele que quer ver” (Antiperipléia);
“Mas ninguém espera a esperança” (Antiperipléia);
“Amava-a com toda a fraqueza de seu coração” (A vela do diabo);
“O gênio é punhal que não se vê o cabo” (Azo de Almirante);
“De faca em popa” (Azo de Almirante);
“Não esperar incluiu misteriosas certezas” (Arroio das Antas);
“O trágico não vem a conta- gotas” (Desenredo);
“Fora tão claro como água suja” (Desenredo);
“A bonança nada tem a ver com a tempestade” (Desenredo);
“O pão é o que faz o cada dia” (João -Porém…);
“O mundo perdeu seu tique-taque” (Presepe).

Nessas maravilhosas estórias, à maneira de Guimarães, há mais, muito mais. Impossível escrever todas as citações neste breve texto. Essas transformações que ocorrem na linguagem rosiana, da obra em questão, levam o leitor a repensar os provérbios já conhecidos por ele e “cristalizados pela tradição”.

“As pessoas não morrem, ficam encantadas”, tal qual o conto natalino Presepe, desejo ao Encantado Rosa “Tintins,  tilintos, laldas e loas” e ponho, em Desenredo, esta pequena “fábula em ata”.

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É Professora, revisora, cronópia, blogueira bissexta. Graduada em Letras, pós-graduada em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Arrisca uns versos, mas quase sempre os risca: considera a leitura o seu melhor momento poético.

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