O Jogo do Anjo é um bom romance com elementos de época e algum toque de misticismo, embora tenha seus problemas de ritmo e condução dos personagens
O Jogo do Anjo, publicado em 2008, é o segundo livro da série Cemitério dos Livros Esquecidos, de Carlos Ruiz Zafón. O primeiro, A Sombra do Vento, foi lançado em 2001, alcançando um estrondoso sucesso na Espanha. Publicado em mais de 44 países, já vendeu mais dez milhões de exemplares, segundo a Editora Companhia das Letras, que publica a série no Brasil, através do selo Suma das Letras. A tetralogia foi completada com as edições de O Prisioneiro do Céu, publicado em 2011, e O Labirinto dos Espíritos, em 2016.
Os dois primeiros livros podem ser lidos de forma independente, embora compartilhem alguns personagens e cenários, com o próprio Cemitério. O Cemitério, aliás, é o exemplo perfeito de como se pode transformar um local em um dos personagens da história. Embora a leitura separada não prejudique a compreensão da narrativa, o ideal é que ela se dê na ordem de publicação das obras. Carlos Ruiz Zafón é hábil em estabelecer vínculos afetivos entre as personas que cria e o seu leitor. Esse ganha, assim, uma linha adjacente de interesse no segundo livro: descobrir a história pregressa de alguns personagens do primeiro.
O Jogo do Anjo inicia cerca de trinta anos antes de A Sombra do Vento. David Martín, abandonado pela mãe e órfão de pai ainda adolescente, vive e trabalha no Jornal La Voz de la Industria, na Barcelona do final da década de 1910. No impedimento de um dos redatores, ganha a chance de escrever um conto e, a partir daí, estabelece-se como um articulista. O sucesso atrai inveja dos demais integrantes da redação e Martín acaba por ser despedido. Pedro Vidal, um escritor rico e famoso que o protege por motivos que são explicados no correr da trama, arranja um contrato de Martín com uma pequena editora. Ele passa a escrever sob um pseudônimo e quase em regime de escravidão uma série de pulp fiction, que se revela um enorme sucesso.
Martín é apaixonado pela filha do motorista de Pedro Vidal, Cristina. Esse amor será uma das linhas condutoras da história até o seu inventivo final. Exausto de tanto trabalhar, sem família e depois de uma desilusão com Cristina, o protagonista descobre estar acometido por uma doença terminal. Nesse ponto, resolve aceitar a proposta de um editor francês, Andreas Corelli, que lhe oferece uma soma gigantesca de dinheiro, cem mil francos e, mais importante, a cura para a sua doença. Em contrapartida, Martín teria que escrever uma única obra, na qual teria de criar “uma religião”, com todos os seus símbolos, profetas e mitologia própria.
Ainda participam do núcleo central da história o Sr. Sempere, dono da livraria de igual nome, que substitui a figura de pai na vida Martín. É ele que o leva ao Cemitério dos Livros Esquecidos, a mítica biblioteca onde repousam obras que escolhem os seus leitores. Tem destaque, também, o filho do Sr. Sempere e pai de Daniel, protagonista de A Sombra do Vento, e Isabella, a assistente de Martín.
A construção de O Jogo do Anjo
A atmosfera da Barcelona do início do século passado, construída por Carlos Ruiz Zafón, é atraente. O leitor consegue se situar de forma rápida no cenário e no ambiente sem a necessidade de descrições cansativas. O livro transita entre o romance, o mistério e o suspense policial, sendo também carregado de misticismo.
O início da narrativa é ágil. Os fatos ocorrem em rápida sucessão nas primeiras cem páginas. A partir daí, o ritmo reduz e Zafón apenas conduz a história ao seu final. A quebra de ritmo não chega a prejudicar o prazer da leitura, embora pudessem ser economizadas umas cinquenta páginas para manter a narrativa mais linear.
Além de problemas de ritmo, o livro possui outros pequenos senãos. A personalidade e as motivações de Martín são irregulares. Ele ora se porta como um fraco, ora como um corajoso. Ora é sagaz, ora é obtuso. Ora é obstinado, ora é fraco. A origem da sua forte ligação com Cristina também não é desenvolvida de forma convincente. O amor entre os dois é forjado em pequenos olhares e insinuações, que não justificam o forte elo entre eles.
O Jogo do Anjo é especialmente atrativo para os apaixonados por livros, como objetos de culto e, em especial, para os escritores. Os medos e angústias da profissão permeiam as páginas da narrativa. Sua abertura já deixa clara a temática:
Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita algumas moedas ou um elogio em troca de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente o doce veneno da vaidade no sangue e começa a acreditar que, se conseguir disfarçar sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de garantir um teto sobre sua cabeça, um prato quente no final do dia e aquilo que mais deseja: seu nome impresso num miserável pedaço de papel que certamente vai viver mais do que ele. Um escritor está condenado a recordar esse momento porque, a partir daí, ele está perdido e sua alma já tem um preço (página 1).
Em vários momentos, há reflexões interessantes sobre o ato de escrever e contar histórias, como este diálogo entre Martín e Isabella:
— O que é verdade emocional?
— É a sinceridade dentro da ficção.
— Então é preciso ser honesto e bom para escrever ficção?
— Não. É preciso perícia. A verdade emocional não é uma qualidade moral, é uma técnica.
— Está falando como um cientista — protestou Isabella.
— A literatura, pelo menos a boa, é uma ciência com sangue de arte. Como a arquitetura ou a música. (página 186)
Os diálogos entre Martín e Corelli são ricos ao abordarem a construção de narrativas, mitos e crenças religiosas. Corelli evoca a figura de Louis Cyphre, do romance Falling Angel (1978), de William Hjortsberg, vivido no cinema por Robert De Niro no filme que dele se originou, Coração Satânico.
Em conclusão, O Jogo do Anjo é um bom romance, com elementos de época, romance, mistério e misticismo, e que, apesar de alguns problemas de ritmo e de construção de personagens, faz jus ao seu sucesso de vendas.