Cinzas do Norte, terceiro romance de Milton Hatoum a ganhar o prêmio Jabuti, é um convite a uma viagem pelos primeiros anos da ditadura militar no Brasil, período em que é ambientado. O romance nos mostra relações conflitantes entre estudantes e militares, regionalismo e provençalismo, cultura e progresso.
A obra conta a história da família Mattoso, focando principalmente nas frequentes desavenças entre Jano (Trajano Mattoso) e seu filho Mundo (Raimundo). Desavenças originadas em função do desejo do jovem garoto de querer ser artista e contrariar todos os planos do pai, que sonha em vê-lo cuidando dos negócios da família. A história da família é entrelaçada, ainda, com a história da costureira Ramira e seu irmão Ran (Ranulfo) e seu sobrinho Lavo, que é o narrador.
Embora possa parecer estranho, a tirania e a violência são os laços entre pai e filho no romance. Tudo começou desde o nascimento de Mundo, que sempre foi enxergado como herdeiro, e não um simples menino; sempre foi visto como um homem à frente da Vila Amazônica, isto é, cuidando dos negócios e riquezas da família. Mundo, quando criança, era aprisionado no porão por querer brincar com meninos pobres e por brincar na chuva, por tal: levava surras de cinturão. Além disso, o pai nunca aceitou o gosto do filho por desenhar, fazer desenhos era algo inadmissível pra ele.
Para Jano, as diferenças do outro eram inaceitáveis, ele prezava por um padrão de sujeito que correspondia a sua personalidade, as que eram distintas, que possuíam uma visão de mundo diferenciadas, eram julgadas, dominadas e, se possível, destruídas, como tentou fazer com Ranulfo. Jano é egocêntrico e sempre age de forma totalitária. No entanto, Mundo é o avesso de Jano; sempre em busca da liberdade, resiste fortemente às vontades opressoras do pai. Mundo busca a liberdade como meio de ter autonomia, recusa-se a ser dominado por forças exteriores à sua razão. Presente em uma carta enviada ao amigo Lavo, o personagem explicita seu desejo por autonomia: Ou a obediência estúpida, ou a revolta”.
Ao que nos parece, Jano demonstra em suas ações medo de que Mundo seja herdeiro apenas dos dons artísticos do verdadeiro pai, Arana. Jano é tirano porque não aceita a afirmação da diferença do outro, nega as aspirações do filho, que são contrárias às suas; não aceita atitudes contrárias das que julga corretas e sensatas.
Vale destacar que a narrativa se situa entre abril de 1964 e dezembro de 1973, isto é, época da Ditadura militar. E aí, instauram-se os reflexos da violência que estão presentes no repressor Estado e suas ferramentas de força ideológica. Jano possui uma visão totalitária em função de sua proximidade com os militares, o que culmina nos confrontos entre pai e filho. As ações dos militares, na obra, principalmente as ações do Coronel Zanda figuram a atmosfera repressiva. Os militares eram acusados de matar um estudante da faculdade de Direito e as aulas foram canceladas em forma de protesto. E em relação a isto, Jano diz que o mesmo aconteceria com Mundo, caso agisse conforme as suas próprias vontades.
É evidente o tamanho desprezo do pai com o filho, que declara que nem morto deixaria o filho em paz, que ninguém pode ser livre como ele deseja e por isso o coronel Zanda daria um jeito nele. Há momentos em que Jano proíbe, inclusive, o filho de rir, acusando que ele ria como uma “putinha”. A violência é instaurada, no romance, tanto de forma física quanto de forma verbal.
A escola em que Mundo estudou é um nítido retrato da violência e repressão, pois os alunos eram obrigados a se sujeitar aos “Jogos de Arena”, jogos em que lutavam e se agrediam, e se por acaso não se sujeitassem: eram castigados. Em um dos jogos, um aluno morre; depois disso, os jogos cessaram por um tempo, mas, depois de um processo que não deu em nada, os jogos voltaram e ainda mais violentos. Quando o personagem vai para o Colégio Militar as coisas não mudam, ou melhor, as coisas mudam para pior, pois a agressividade dos colegas e a violência paterna são somadas ao rigor dos treinamentos na selva, e, então, Mundo passa a expressar sua rebeldia por meio da arte, como por exemplo: o Campo de Cruzes, arte contestatória que tinha como objetivo denunciar o que acontecia em Novo Eldorado. A arte a e rebeldia de Mundo enfurecia cada vez mais Jano.
No fim do romance, fica evidente que a arte de Mundo era reflexo de uma vida de mágoa e dor. O ódio de Jano era a realidade de Mundo durante a sua vida, foi esse ódio que alimentou sua produção artística.