Tóquio 2020/2021: Uma olimpíada a portões fechados seria um abalo não apenas para os atletas e para o público, mas também para o bolso dos organizadores
“Trégua olímpica”
Houve um tempo em que as olimpíadas mobilizavam um respeito sobrenatural. Ainda na Grécia antiga, durante o acontecimento dos jogos, as guerras eram proibidas por decreto. Isso permitia a condução segura dos atletas e torcedores entre a malha de cidades-estados gregas. Por dez dias até mesmo Ares, deus da guerra, sentava-se nas tribunas para acompanhar os jogos destinados a Zeus, Hermes e Hércules, divindades dos atletas.
O armistício simultâneo em prol do esporte era chama de “Trégua Olímpica”. O tempo, contudo, não seria gentil à história dos Jogos.
Após um hiato de séculos de heresias, perseguições e blasfêmia contra a atividade física, as Olimpíadas teriam um renascimento triunfante das ruínas da história grega em 1870. Menos de um século depois, o maior espetáculo da terra seria cancelado novamente em virtude da Primeira Guerra Mundial, no ano de 1918, naquele momento, a guerra não quis esperar os jogos.
Na total contramão do proposto pelos gregos, o mesmo ocorreria por duas edições poucos anos depois. As Olimpíadas coincidiram com a Segunda Grande Guerra. Em uma completa inversão de valores, “Trégua Olímpica” passou a significar nos nossos tempos uma pausa nos jogos para resolvermos conflitos mundanos.
Se nossos problemas não podem esperar, que tal as olimpíadas?
O brilho nos olhos ou os olhos no brilho
Há quem se lembre que o evento das Olimpíadas 2021 de Tóquio estava programado para julho de 2020, o ano em que o mundo acabou. Com o limiar da pandemia, o governo japonês pediu o adiamento imediato da olimpíada em um ano. Na época, alguns acreditavam que a crise sanitária poderia ser sanada antes do espetáculo. O resto é história…
Apesar da presença ubíqua da COVID-19 e o crescimento do número de casos, um dos motivos de insônia do COI e autoridades japonesas era a bancarrota financeira.
Uma olimpíada a portões fechados seria um abalo não apenas para os atletas e para o público, mas também para o bolso dos organizadores. Foi colocando os olhos no brilho do lucro que se perdeu um pouco do “brilho nos olhos” que só o esporte consegue nos trazer.
Nos primeiros dias, os protestos nos arredores do estádio olímpico atraíram uma gama de torcedores. Olympics kill the poor e Stop the Olympics valeram como cantos irados da tribuna enquanto a cidade atingia recordes diários de casos de COVID-19.
Desse fervilhar de revolta, a arte voltou a emergir como linguagem sublime de desacordo. A artista japonesa Miwako Sakauchi, usou da pintura para gritar seu descontentamento com a realização do evento.
“Eu não consigo pensar nisso como uma ‘festa da paz’ na atual situação. É totalmente sem sentido”, declarou, de seu estúdio, enquanto o pincel furioso manchava “Vortex”, uma das pinturas símbolo da insatisfação dos locais com a Olimpíada.
Uma luz no fim do túnel
No meio de um concerto trágico, vimos emergir exemplos que nos relembram o significado do espírito olímpico.
Não há brasileiro que não tenha comemorado as manobras de nossos atletas no skate (esporte sempre associado à marginalização por essas terras). A vibração foi geral quando Rebeca Andrade levou o baile de favela à pista mais disputada da ginástica artística. O orgulho pelo melhor resultado da história do COB reacendeu uma chama de união que não se via há alguns anos no país.
Por outro lado, temas de cunho social renasceram das cinzas da tocha olímpica. O uniforme ‘sexualizado’ das atletas foi uma contestação perene em muitas modalidades. As atletas alemãs de ginástica artística se apresentarem pela primeira vez com “macacões” (menos cavados que os colãs) que corriam até os tornozelos.
A postura de muitas atletas começa a pôr em xeque uma falta de liberdade de vestirem “o que quiserem” – em detrimento de uniformes muitas vezes costurados para favorecer a sexualização perante as telas da TV. Aos poucos, a olimpíada revelava velhos vícios, às vezes adormecidos.
Simone Biles também trouxe para o podium um tema tão pertinente quanto negligenciado nos tempos pandêmicos. Ao mostrar às câmeras do mundo que era “ok não estar ok”, a ginasta americana inaugurou decerto uma nova postura em frente a pressão do sucesso.
Ao escolher preservar sua saúde mental, ela deu a mundo um exemplo de um dos bens mais preciosos em uma sociedade que olha apenas para o resultado imediato e esquece do desgaste humano do processo. Sobre essa temática, recomendamos ler Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han.
Conclusões possíveis
No fim, quando a chama olímpica se apagou em Tóquio, um fantasma continuou a assombrar a arena. Não eram só todas as vítimas da pandemia, mas algo mais. Era a impressão de uma Olímpiada que já estava sendo esquecida, por muitos, na véspera.
Diferente do passado, a “Trégua Olímpica” não veio, e tampouco os jogos foram cancelados. Os atletas não se destacaram somente pelos títulos e resultados, mas por mostrar ao mundo seu lado humano. E das tribunas vazias, apenas o silêncio permanente acompanhou os jogos até o encerramento.
Como essas olímpiadas serão lembradas no futuro? Isso, só o tempo dirá. Talvez, apenas uma frase ecoe, quase como um arrependimento, nas páginas dos livros de história: se nossos problemas não podem esperar, que tal as olimpíadas? E talvez, isso fique sem resposta.
Créditos Homo Literatus
O texto acima é de autoria de Eduardo Reitz, colaborador fixo do Homo Literatus.
A revisão é de Raphael Alves. A edição é de Mario Filipe Cavalcanti (Editor-chefe do Homo Literatus).