No seu novo livro, Gonçalo M. Tavares quebra pescoços duros de estagnação literária
Todas as vezes que decido ler um livro de Gonçalo M. Tavares, preciso de uma preparação mental que antecede a leitura. Tento ligar meu botão mental da vanguarda, aprumo o senso crítico, dou uma erguida no volume da estética e me ajeito no sofá do silêncio tentando, minuciosamente, captar cada possível sentido de cada palavra do texto em questão. Às vezes me dou por satisfeito, ainda que um incômodo de ter deixado algo passar venha me visitar nas reflexões pós-leitura. Na maioria das vezes sinto que o caminhão literário me pega desprevenido na esquina do meu prédio. O desprevenido era eu e o caminhão não está desgovernado. Quando se trata de Gonçalo M. Tavares o lugar comum literário é mandado à estratosfera.
Tenho sempre essa sensação de bom incômodo quando leio esse escritor português. Foi assim com todas as obras que li dele (Matteo perdeu o emprego, O senhor Brecht, Short stories etc). Esse efeito aconteceu também com seu mais recente livro, O torcicologologista, excelência (2017), publicado pela Dublinense, que, diga-se de passagem, fez um belo trabalho gráfico. O livro conta ainda com textos de bons escritores nacionais: orelha de Reginaldo Pujol Filho e contracapa de José Castello.
Esse incômodo, talvez um torcicolo, já tomando a liberdade para usar um termo do livro, começa com o próprio título. Difícil é acertar a leitura na primeira tentativa, já antecipando o que nos espera nas próximas duzentas e cinquenta e duas páginas. Aliás, o problema não é só fonético, mas também semântico, afinal há algum especialista em torcicolo ou o torcer é no logos mesmo?
Não consegui até agora categorizar esse livro (não que isso seja exatamente um problema). A ficha catalográfica diz “contos portugueses”, mas não estou bem certo disso. Tive a sensação, além de se tratarem de contos, de que pode ser bem um romance, um ajuntado de sketches ou alguma coisa ainda inominada.
Não há narrador. Em todos os textos, o discurso é direto e, na maioria esmagadora deles, há apenas duas personagens excêntricas que se chamam mutuamente de “excelência”. O efeito provocado por esses diálogos, cujos temas variam entre animais, jogos olímpicos, natureza, santidade, banhos, tempo e outros, é de uma realidade absurda. Em alguns momentos, lembra os diálogos absurdos travados em Esperando Godot, de Samuel Beckett. Contudo, em outros momentos, o efeito é tão absurdo que cheguei a me perguntar se os diálogos eram mesmo nonsense ou tinham realmente uma profundidade intelectual e que eu não sabia captar as diferenças.
Um dos textos, sobre uma revolução ginástica, suscitou em minha mente a bizarrice da dancinha do impeachment. Em outro, sobre a desorientação heroica de um herói, no qual uma das “excelências” propõe a fuga como nova forma de enfrentamento, uma espécie de político que tenta desmentir o que está na cara, no caso, a covardia.
Em outros textos, sobretudo na segunda parte, intitulada “cidade” (a primeira se chama “diálogos”), os personagens são chamados (por que não classificados?) por números, em uma clara despersonalização. Por isso, acho que Tavares, em todos os seus livros, é profundo na captação da alma humana, sem deixar de ter um discurso atual, apontando inclusive para um futuro no qual um escritor pode estar à frente de seu próprio tempo.