Torto Arado: novos caminhos para romances que retratem o Brasil

0
Torto Arado: novos caminhos para romances que retratem o Brasil

Como o romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, dá voz a uma mulher negra, descendente de escravos.

Torto Arado" estreia entre os mais vendidos em dezembro na Estante Virtual | Estante Virtual Blog

Em uma época tão difícil como a nossa, livros como o ganhador do último Prêmio Jabuti de melhor romance representam ventos de renovação. Trata-se de “Torto arado”, do autor baiano Itamar Vieira Junior (1979-).

Por razões de espaço e de paciência do leitor, vou me ater a uns poucos pontos. São eles: o mercado editorial, o protagonismo feminino e a ancestralidade afrodescendente. Mas, antes, darei um breve resumo do enredo:

O enredo

Belonísia e Bibiana são duas irmãs que vivem em uma comunidade rural de descendentes diretos de negros escravizados. Todos os trabalhadores vivem em um regime de pós-escravidão. Isso porque lhes é permitido que morem ali e tenham suas roças, desde que trabalhem na lavoura do dono das terras.

Um dia, sem permissão, Bibiana retira uma faca muito antiga da mala de roupas de sua avó. Ambas, Bibiana e Belonísia, colocam o objeto na boca para experimentar o gosto daquele metal que brilha tanto e tanto as encanta.

Como as duas retiram a faca com pressa da boca, acabam por se machucar. Uma delas tem a língua decepada por aquela faca ancestral. Isso as torna ainda mais íntimas, pois uma se transforma na voz da outra para os demais.

O livro conta a história da vida dessas duas irmãs, as violências que sofrem por conta de sua condição (mulheres, negras, rurais, descendentes de escravizados) e suas trajetórias pessoais, dramáticas na essência.

O protagonismo feminino

A professora da UnB, Regina Dalcastagné, fez uma extensa pesquisa com livros da literatura brasileira e chegou a algumas conclusões assustadoras. Segundo ela, a maioria dos romances escritos por autores e autoras nacionais apresentam mais ou menos as mesmas constantes. São elas: protagonistas brancos, homens, classe média, urbanos, heterossexuais etc. Ou seja, reafirmam um status quo que inibe a aparição de outras formas de existir no nosso país.

O protagonismo feminino também poderá ajudar a dar voz a problemas tão antigos quanto a descoberta do fogo. Isso inclui o combate à violência contra a mulher, o feminicídio, e outras aparições ainda menos exemplares, tais como a misoginia e o arcaico machismo estrutural de nossa cultura.

Quando vozes antes caladas são escutadas, a sociedade sempre melhora, porque se torna mais diversa e democrática.

Público leitor

Esse mesmo protagonismo feminino, preto e afrodescendente dialoga também com uma recente pesquisa (O Globo, 11/04/2021, Segundo Caderno) que afirma o crescimento do público leitor das classes C, D e E. 70% dos leitores brasileiros pertencem a essas faixas.

Tal constatação assusta e bagunça certezas que afirmam que acesso à cultura e poder econômico precisam andar juntos.

A questão que se apresenta é: por que esse aumento de interesse ocorreu nessas faixas? Por causa da pandemia? Da representatividade que esse público (preto, pobre, minoritário e socialmente vulnerável) vê sendo aumentada nos livros ofertados nas estantes?

Se essa segunda hipótese for verdadeira, “Torto arado” surge como ainda mais importante e revolucionário para a nossa literatura. Ele contribui no quesito formação de leitores.

Isso também nos faz certificar que livros não são produtos voltados para a elite, como um ou outro governante pouco hábil com as palavras possa afirmar. Elite costuma comprar iates e helicópteros, não livros.

Uma abertura para a diversidade

Se, por curiosidade, olharmos nossa estante, veremos que a maioria dos livros ali dispostos são, como a professora da UnB pontuou, de autores do sexo masculino. Poucas mulheres. Pouquíssimos LGBTQI+.

Podemos mencionar os detalhes técnicos que fazem de “Torto arado” um livro ímpar para a literatura brasileira: a extrema habilidade e consciência narrativa, as três narradoras em primeira pessoa, a delicadeza da obra, a temática, a ousadia de uma pequena editora apresentar uma obra com essa temática etc.

Porém, para além disso, a obra de Itamar Vieira Junior nos provoca questionamentos sobre que tipo de literatura andamos consumindo e nos convida a uma mudança de perspectiva.

Questões de mercado

O Jabuti, prêmio ligado à Câmara Brasileira do Livro, sempre teve a tendência de valorizar mais as grandes editoras, o que quase sempre deixou as pequenas editoras e as iniciativas de autopublicação à margem do processo de competição.

Como prêmio literário mais importante do país, isso não permitia que a diversidade de povos, gentes e culturas aparecessem como realidade nos romances premiados.

Com algumas exceções, é claro, a literatura premiada pintava um Brasil eugênico, branco, de cultura predominante urbana e limitada ao eixo Rio-São Paulo.

Por conta disso, o prêmio veio em boa hora dar voz às pequenas vozes de um Brasil rural, um país esquecido dos grandes telejornais dos horários nobres. A editora que traz “Torto arado” é a Todavia. Trata-se de uma pequena editora que com certeza ganhará excelente impulso por causa do prêmio. Mostras disso é que o livro está no topo das listas dos mais vendidos há mais de duas semanas.

Referência

VIEIRA JR, Itamar. Torto Arado. 1a. Ed. São Paulo: Todavia, 2019.

Previous article Mother Earth’s Plantasia: muito mais que um aditivo para plantas
Next article As dicas de Chimamanda Adichie para educar crianças feministas
João Peçanha é escritor e professor. Doutor em Estudos Literários pela UFF e mestre em literatura pela USP. Tem vários contos premiados em diversas revistas nacionais. Seu livro de contos “Cantata para dezesseis vozes e orquestra” ganhou o prêmio nacional da revista Cult (2003). Sua peça teatral “O pacote” ganhou o prêmio nacional de dramaturgia da Fundação Cultural da Bahia (2004). Publicações: “Dezamores” (coletânea de contos reunida pelo escritor João Silvério Trevisan, 2003); “O pacote” (peça, 2005); “Satie manda lembranças” (contos, 2007); “O último selo” (crítica literária, 2009). Os romances vieram na ordem: “Patagônia Babilônia”, “Os cadernos de Pietene” e "Ave do sertão", este último escrito a quatro mãos com Paula Caminatti. Seu romance mais recente, "Aquela estranha arte de flutuar" (2022), foi publicado pela Editora 106.

Não há posts para exibir