A cabeça de Antero já era, alguns anos antes da virada do milênio, um aperitivo do que se tornaria o pensamento na era do Google e da Wikipedia
Quem acompanha o Galera no twitter com certeza já se deparou com uma das pílulas de suspense que o autor de Barba Ensopada de Sangue lançava, em 140 caracteres, sobre seu novo livro. Quem pode ter adiado um pouco o fim desta saga, que começou há mais de um ano (pelo menos no twitter), foram os games e eventos literários, principais ‘ladrões de tempo’ da produção da obra, relato que é possível ler de forma mais concisa nesta entrevista para a Revista Brasileiros.
Na última sexta-feira, 13, finalmente conseguimos informações mais concretas sobre a obra, a primeira delas sendo o próprio nome: Meia-noite e vinte. O tweet de Daniel Galera também revela que o livro sairá pela Cia. Das Letras e estará disponível nas livrarias a partir do dia 12 de setembro, além de exibir uma espécie de teaser de 15 segundos, que não diz muita coisa mas traz talvez um tipo de atmosfera que se pode esperar do livro.
Nos links de pré-venda é possível dar uma olhada na sinopse da história, que se passa em 1990, com três personagens responsáveis por um fanzine digital, narrativa que remonta à de Galera, Pellizzari, Clara Averbuck e cia. à frente da Cardoso Online. No mesmo dia do anúncio da novidade, uns vinte minutos depois, Galera conta que pretende lançar alguns trechos do romance durante as próximas semanas no seu tumblr. O primeiro já divulgado, que reproduzo abaixo. No texto é possível identificar outros temas comuns do autor, como ciência, internet e publicidade.
“Sei lá”, ela continuou, com uma entonação tristonha, “isso que aconteceu com o Duque me deixou uma sensação de que já acabou.”
“Já acabou o quê?”
“Tudo! Vocês não têm andado nas ruas? Porto Alegre parece uma galinha sem cabeça correndo pelos últimos minutos no quintal. Em São Paulo tem gente dizendo que vai acabar a água da cidade. Tento ser cautelosa quando leio sobre mudança climática, radioatividade, extinção em massa. Mas parece que ontem eu tomei um tapa na cara.”
Eu a interrompi de maneira um pouco ríspida, dizendo que um grande amigo nosso tinha morrido de forma estúpida e aleatória por causa da miséria que havia acompanhado a raça humana desde sempre, e que não tinha nada de novo nisso. Não tinha a ver com o aquecimento global ou com o fim do mundo. Apenas um mundo havia acabado, e era o mundo de Andrei. Esse mundo somente ele conheceu. Mas ele havia se esforçado pra compartilhá-lo da única maneira que estava a seu alcance, a literatura, esforço que o consumia quase às raias de um autismo social. E a moral da história naquilo era o prevalecimento do que nos fazia humanos, incluídos o medo da morte e o medo do apocalipse. Era o compartilhamento e a propagação desses e de todos os outros sentimentos e valores, não importava quão fodidos estivéssemos nós ou o mundo, sempre na direção daquela unidade ideal em que todas as vidas se apagavam somente pra se encontrarem, o nosso acesso às demais vidas, a entrega que nos permitia alcançar uma dissolução em vida no lugar de uma dissolução na morte, que de todo modo viria cedo ou tarde mas que não deveria chegar aos trinta e seis anos com um tiro na cabeça por causa de um telefone celular. Não me expressei com essas exatas palavras, claro, mas, confuso, abalado e já um pouco bêbado como estava, foi algo nessa linha o que vomitei na mesa daquele bar que já tinha sido tão especial pra nós. Tanto Aurora como Antero toleraram meu rompante. Não era a primeira vez que me viam irado. Com outras pessoas, em momentos como aquele eu me sentia como uma fera enjaulada que não ganharia comida se não se acalmasse. Com eles, e com Duque, era diferente. Eu os sentia na jaula comigo, respondendo ao meu estado em vez de simplesmente reagindo do outro lado de uma barreira. Próximos. Do lado de dentro.
Desviamos do tema da catástrofe iminente da civilização pra recordar anedotas de nossos primeiros anos na companhia de Duque. Os primeiros contos que havia publicado na internet, sempre ansioso pra saber nossa opinião, tentando afetar humildade diante de nossas críticas. Mais tarde, os livros independentes que havia produzido com financiamento público e algum dinheiro do próprio bolso. Seus raros e súbitos surtos de camaradagem e de concessão ao contato físico com os amigos. O carisma que tinha no começo, e que foi diminuindo à medida que seus livros conquistavam leitores e respeito, dando lugar a uma atitude impaciente e impenetrável. O Duque que estava de uma certa forma sentado à nossa mesa era aquele de mil novecentos e noventa e nove, quando eles tinham seus dezoito anos, e eu vinte e cinco, aquele ano em que havíamos existido com uma intensidade que nunca mais se repetiria.
Chegou a noite, afinal, e com ela passamos a falar de nossas vidas recentes. Antero tentou explicar as atividades de sua empresa de tendências e comunicação, ou era de publicidade e marketing, ou de gamificação e etnografia voltada pro mercado. Enfim, era algum tipo de enganação em larga escala. Mas nos últimos anos ele havia conquistado clientes como Ambev, Volkswagen, Sony e Unilever. Viajava pra São Paulo a cada duas semanas e pro exterior pelo menos uma vez por mês. Embora eu soubesse que ele tinha se transformado num publicitário de alguma espécie, até aquele dia no Sabor Um não fazia ideia da proporção de sua empresa. Era com certeza um milionário. Eu o imaginei vociferando “bombardeio cirúrgico!”, ou qualquer outra das expressões antitéticas à moda de Paul Virilio que haviam se tornado chavões, pra invocar as contradições da pós-modernidade no meio de um escritório hipster, repleto de pessoas que se autointitulavam criativas, exortando sua equipe a encontrar a nova fórmula pra vender automóveis a uma geração cada vez menos interessada neles. Havia uma ironia brutal naquela trajetória. Uma ironia da qual ele me parecia plenamente consciente. Antero tinha sido uma das figuras mais provocadoras da cena cultural da cidade nos anos noventa. Organizara eventos e exposições de arte em prédios abandonados e galerias comerciais de bairros populares e periféricos, como a Galeria Coruja de Minerva, na Medianeira, e em praças da Restinga. Costumava ler seus textos incompreensíveis em saraus diante de plateias de meia dúzia de pessoas. Mantivera por anos um blog onde publicava quase todos os dias, após o fim do Orangotango, posts intermináveis sobre a sociedade do espetáculo, rizomas e simulacros. Qualquer mongo jogava conceitos como esses em conversas e textos pra tentar parecer inteligente no mundinho das faculdades de humanas. Mas ele de fato lia Debord, Deleuze & Guattari, Baudrillard, Benjamin e outros pensadores que os professores menos desesperançados ainda tentavam ensinar aos estudantes de comunicação social. Lia também psicologia evolucionista, filosofia chinesa e grega antigas, Freud, Foucault. A cada dois ou três meses ele trocava de fase. Fase do animal moral, fase ciborgue, fase zen, fase andrógina, fase anarquista. Cada uma com um novo visual correspondente, como um Edu K do diretório acadêmico. O cabelo se mantinha comprido, mas mudava de cor junto com roupas, acessórios, gestual. Ele lia mais que todo mundo, mais que Duque inclusive, embora o resultado daquela voracidade toda fosse uma barafunda meio incoerente de pensamentos e de citações que eram disparadas pra causar o máximo efeito sedutor, sem necessariamente significar alguma coisa no contexto do debate ou da situação. Seu discurso cotidiano era um enorme painel incompleto onde ele copiava e colava as ideias sem muito critério ou noção do conjunto. A cabeça de Antero já era, alguns anos antes da virada do milênio, um aperitivo do que se tornaria o pensamento na era do Google e da Wikipedia. E, se naqueles dias aquilo tinha algo de vanguarda, inspirando uma mistura de fascínio e confusão em quem lia seus manifestos on-line ou ouvia suas rajadas de frases de efeito, agora se prestava sobretudo a chancelar culturalmente as marcas, produtos e serviços dos clientes que ele atendia. Ele se comportava como um guru mercadológico, ou seja, como um pateta. Sua existência, aos meus olhos, se aproximava de um esquete de humor absurdo que não tinha hora pra terminar nem reconhecia diferença entre palco e vida. Se fosse proposital, seria genial. Talvez fosse. Ninguém poderia ter certeza.
Não houve como deixar de perceber, ao longo de toda aquela noite, os olhares lúbricos, quase maníacos, que Antero direcionava a Aurora. Esses olhares não deram trégua nem quando ela nos contou, lá pela nossa oitava garrafa de Serramalte, a respeito da quase morte de seu pai e das ameaças que rondavam sua carreira. Um professor vingativo havia sabotado sua banca na qualificação do doutorado na USP. Um novo exame tinha sido marcado. Se tivesse problemas de novo, poderia perder a bolsa. Uma suave corrente elétrica pareceu erguer sua espinha e iluminar seus olhos quando ela começou a descrever os pormenores da pesquisa, um estudo que buscava compreender melhor o relógio biológico da cana-de-açúcar. Era um projeto muito ambicioso, com implicações variadas, com destaque pra chance de obter resultados revolucionários pro agronegócio.
“A plantinha tem um oscilador interno”, ela nos explicou com gestos e a fala pastosa, agitando o indicador como um metrônomo, “e a entrada dos estímulos do ambiente permite que o relógio biológico funcione, gerando os ritmos. O que eu tô investigando é como a cana processa esses sinais, informando às células que é dia ou noite, pra que ela ajuste o crescimento, a fotossíntese, coisa e tal.”
Lembro de ter pensado que poucas pessoas na Terra mereciam ser recompensadas como ela pelos esforços que haviam feito na vida. Senti um desejo cortante de que fosse bem-sucedida em tudo, que tivesse motivos de alegria nos anos seguintes. Estava bonita com os cabelos presos num coque e o pescoço suado. Houve um período, muitos anos antes, em que eu tinha chegado a confundir esse carinho desmedido que Aurora despertava em mim com um desejo sexual, uma sombra ou ameaça de desejo que me deixava aflito. Antero comentou algo que tinha a ver com um livro de física que tinha lido, de um autor que negava a existência do fluxo do tempo, e os dois se jogaram numa discussão que me soou impenetrável. Eu conhecia bem o fluxo do tempo e não estava particularmente interessado em discutir se ele de fato existia ou de que formas ele me fodia no nível molecular. Levantei e anunciei que iria ao banheiro estudar o fluxo da minha urina.
Na mesa disposta bem ao lado da porta do bar, um velho de cabelos brancos, corpulento como uma morsa, com uma cânula de traqueostomia alojada na garganta pelancuda, conversava por meio de sussurros roucos com o dono do bar, que estava limpando com pano e álcool o balcão de inox onde era servido o bufê de almoço. O aroma gorduroso das refeições do dia ainda pairava no ar quente. O banheiro me trouxe lembranças boas. Eu tinha transado duas vezes ali, uma delas debruçado por cima daquele mictório. Impressionante, pensei, como antigamente se fornicava nos banheiros dos bares de Porto Alegre. As pessoas iam dar uma rapidinha no banheiro do Bambu’s, do Garagem ou do Dr. Jekyll como agora se ia à rua fumar um cigarro. Costumava haver um espelhinho com moldura de plástico laranja naquela parede. Havia sumido. Eu lavava as mãos com o detergente verde de uma das saboneteiras de vidro giratórias quando meu celular tocou. Era Frank, querendo saber se eu podia falar. Sentei no vaso e consenti. Tentei disfarçar a embriaguez. Ele perguntou sobre o enterro, se tinha imprensa, se eu tinha conversado com a família. E então me disse que tinha uma proposta a fazer. Queria que eu escrevesse sobre o Duque. Como eu tinha previsto.
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