“Trópico de Câncer”: a obra essencial de Henry Miller

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Polêmico e inovador para a época, Trópico de Câncer, de Henry Miller, não foi sua primeira incursão pela literatura

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Em 1922 deu-se a primeira tentativa literária de Henry Miller com Clipped Wings. Tratava-se de uma narrativa baseada na personalidade de mensageiros com os quais ele trabalhou na Western Union Telegraph Company no início da década de 20 nos Estados Unidos. O próprio autor considerou a obra deplorável e não veio a publicá-la. Em 1924 escreveu pequenos poemas em prosa, aos quais deu o nome de Mezzotints. Estes foram vendidos de porta em porta por Henry, ou em cabarés pelas mãos de June Mansfield (companheira de Miller na época), numa tentativa de amenizar a penúria a que os dois estavam reduzidos. Já em 1929, Henry terminou o romance This Gentile World, que também nunca viria a público. Em 1988, Mary V. Dearbon, biógrafa do escritor, iria descobrir ainda um bom romance dele começado em 1927, chamado Crazy Cock, só lançado postumamente.

Mas aquele que ficou conhecido como o primeiro romance de Henry Miller foi mesmo Trópico de Câncer (1934). O livro abalou a literatura de sua época e é justo que figure como obra de estreia do escritor estadunidense, pois foi a partir dele que Miller disse a que veio. Trata-se de um texto vertiginoso em que os acontecimentos se mesclam aos estados de espírito do narrador, seus pensamentos e devaneios.

O cunho fortemente autobiográfico faz com que seja chamado de romance confessional. Por que considerá-lo literatura confessional e não simplesmente livro memorialista? Ora, no memorialismo não estamos diante de literatura, mas sim de não-ficção, onde os fatos têm mais importância que a forma como são relatados. Miller chegaria a escrever algo assim: o belíssimo O Colosso de Marússia, que resgatou o velho gênero dos livros de viagem, registrando os passeios de Miller pela Grécia. Mas em Trópico de Câncer, por mais forte que seja o teor autobiográfico, não podemos nos esquecer que estamos diante de um romance. Muito do que ali é narrado deve, de fato, ter se passado com o autor, mas, certamente, várias outras coisas vêm do mais puro exercício de imaginação. Para nós, leitores, o que importa é a beleza do escrito, a unidade do universo ali criado, a sinceridade daquele mundo.

Trôpico de Câncer é uma narrativa em primeira pessoa, mostrando as (des)aventuras de um escritor norte-americano desconhecido através de suas andanças por Paris. No relato, entra tudo o que o “bom-tom” literário deixaria de lado, como pormenores sexuais e escatologia. No campo vocabular, Miller também se permite todas as ousadias, incorporando palavras chulas aos seu texto, onde promiscuamente convivem termos eruditos e coloquialismos, em metáforas arrojadas, expressões poéticas ou cruezas narrativas extremas.

O romance não segue um fluxo linear. Percorre bulevares, cinemas, cafés ordinários, prostíbulos, livrarias, cabarés e pensões  baratas. Envereda por digressões do narrador acerca de livros, como quando – no terceiro capítulo – ele se fascina com o título de Um Homem Cortado em Fatias, romance exposto numa vitrine. Flanando por todos os cantos da cidade, a história às vezes se paralisa frente a alguma personagem, como as diversas prostitutas que surgem diante do narrador. Cada uma com seu pormenor, sua complexidade própria – sua riqueza interior. Os tipos humanos presentes em Trópico de Câncer nunca são apresentados de maneira simplória, emergem no livro vivos e resplandescentes em suas virtudes e defeitos.

O fato de a narração ser bastante livre e baseada em experiências do autor (que realmente morou em Paris nos anos 30), pode levar alguns a pensar que o livro foi escrito num espontaneísmo displicente, sendo um amontoado de registros imediatos sem um acabamento final que lhe conferisse unidade e cortasse as partes desnecessárias. Nada mais falso. O livro foi escrito três vezes antes de ser publicado em 1934. Se Henry Miller pouco se importava com convencionalismos, leis, etiquetas sociais e sucesso financeiro, o fato é que uma coisa, pelo menos, ele sempre levou muito a sério: a literatura. Por ela, aliás, enfrentou o mundo inteiro.

Trópico de Câncer permaneceu proibibido durante 30 anos nos Estados Unidos da América, que muitos teimavam em chamar de “terra da liberdade”, apesar da opressão estatal que volta e meia ameaçava seus artistas. Miller certamente não se espantou com essa repressão governamental, pois nunca nutriu ilusões acerca do Estado, infuenciado que foi por personalidades da estatura intelectual de Emma Goldmann (anarquista russa que conheceu em San Diego em 1913), do individualista Max Stirner (1806-1856) e do filósofo iconoclasta Friedrich Nieztche (1844-1900).

A luta foi longa, mas finalmente, em 1964, Henry Miller venceu a batalha jurídica e foi publicado legalmente nos EUA. Antes disso seus livros já circulavam clandestinamente pelas mãos de estadunidenses que, como Miller, não aceitavam se curvar a interdições absurdas.

Hoje Trôpico de Câncer não é mais proibido. Mas ainda há os que não ousam experimentar suas páginas transgressoras, pois, mesmo sem proibições expressas, permanecem presos a puritanismos e hipocrisias sociais que impedem a fruição artística em todas as suas possibilidades.

Referências:

FOLHA DE SÃO PAULO. Sinopse. Acesso em: http://biblioteca.folha.com.br/1/08/sinopse.html;

MILLER, Henry. Trópico de Câncer. São Paulo: Edições Ibrasa, 1974;

NASCIMENTO, Esdras do. O Mundo de Henry Miller. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1969.

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