Tua roupa em outros quartos: deslocamentos geográficos e afetivos

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Tua roupa em outros quartos: deslocamentos geográficos e afetivos
Tua roupa em outros quartos, de Antonio Pokrywiecki, é um romance sobre deslocamentos, tanto geográficos quanto afetivos,  aponta os caminhos que os afetos percorrem para existir, mesmo que por tempo limitado
Tua roupa em outros quartos, autor Antonio Pokrywiecki
Antonio Pokrywiecki, autor de Tua roupa em outros quartos

Matt Berninger é um frontman excêntrico, calado demais para uma banda de rock. Faz shows em grandes festivais cantando baixo, quase resmungando. Uma mão segurando o microfone e a outra no bolso. É discreto e tímido. Em alguns poucos momentos de seus shows, Matt abraça um fã, aponta o microfone para sua boca e grita, visivelmente comovido. É dele a epígrafe na página inicial de Tua roupa em outros quartos, e não à toa: seus gestos se assemelham aos de Fernando, narrador e protagonista do livro. Como palco, Fernando tem dois lugares: Brasil e Portugal. É um livro sobre deslocamentos: geográficos e afetivos. Os deslocamentos geográficos não são descritos, os afetivos sim.

Fernando começa a história já adulto e sozinho, em um balneário catarinense. Com a caminhonete de seu avô ele vai ao antigo apartamento em que a família passava as férias, em Itapema. Em dois parágrafos, através de suas lembranças, já estamos nesse mesmo balneário só que agora no passado, nas férias de sua infância. Fernando, criança, dorme no banco de trás do carro de seus pais, brinca com a mãe de prender a respiração durante um túnel no caminho. A partir daí, uma descrição se aprofunda e ocupa o capítulo todo descrevendo sua infância e suas férias. O Fernando de agora, narrador, contrapõe a cidade do passado à de hoje, a caminhonete de seu avô ao Peugeot de sua infância. Sabemos pouco sobre o Fernando adulto enquanto o vemos, criança, em um episódio seguro e aconchegante de sua infância. Mais um deslocamento do livro: a infância narrada a partir do agora. Em outro momento no mesmo capítulo, lá pelas tantas, Fernando diz “ sinto que aprendi a dirigir roendo unhas”. Uma pista sobre os gestos futuros/passados do protagonista. Não muito seguro ele dirige. Com alguma dificuldade, Fernando se desloca.

Um itinerário afetivo

Longe da linearidade, o livro parece se organizar a partir de um itinerário afetivo. É constituído de episódio dispares, mas de grande importância para o narrador. Com o foco dos capítulos sempre no narrador e em seus afetos, a sensação de fragmentação é quase inexiste, apesar da aparente aleatoriedade temporal e geográfica. Não existe “se perder” na narrativa, pois o livro não se organiza em começo, meio e fim. O factual não é o que há de mais relevante. Nos deslocamos ao lado de Fernando.

Esse itinerário é composto por episódios isolados (não há um grande arco narrativo). Entre eles, estão Fernando conhecer e pedir em namoro Margarida, a formatura de seu primo, a rotina comezinha de sua vida, seus fracassos, uma festa, um namoro que chega ao fim. Nesse percurso, o protagonismo de Fernando é sempre problemático. Quando não é alheio ao que acontece, Fernando é quase sempre equivocado em seus gestos. Na formatura de seu primo, o vemos fumando ao lado do segurança no lado de fora e tecendo, incrédulo, ao leitor, comentários sobe a música da formatura e a disposição da fila de ar-condicionado. Numa outra festa, o vemos dividido entre atenção a um amiga e à namorada. Numa crise no relacionamento, o pedido de desculpas mais parece a exigência do término do namoro. Uma sucessão de gestos equivocados. Como se houvesse, entre o que o narrador almeja e o que o narrador faz, um hiato. Um abraço que sempre termina por quebrar os ossos do abraçado.

Linguagem e deslocamentos

Tua roupa em outros quartos, excetuando-se o belíssimo título, porém é de pouco lirismo e, quando este surge, é sempre fotográfico e comparativo. As metáforas complexas, o experimentalismo linguístico e certa poética clichê voltada ao sentimentalismo passam longe do livro. A palavra amor sai da boca do narrador apenas uma vez e apenas para descrever um gesto “de paz e amor”. São a narrativa, os gestos quase vazios do protagonista, seus movimentos (afetivos e geográficos), sua hesitação e movimentos bruscos, suas idas e vindas e seus deslocamentos afetivos que compõem o que há de mais interessantes no livro.

Tua roupa em outros quartos (Patuá, 2017)
Tua roupa em outros quartos (Patuá, 2017)

Na literatura de Pokrywiecki, esse movimento, e a experiência de estar em outro lugar, junto às comparações, são ferramentas que Fernando usa para dar sentido ao seu mundo e à sua vida. Daí ele extrai verdades sobre si, seus amores, sua família, sua infância. Sobre tudo, menos sobre o lugar a que pertence afetiva e geograficamente. Essas verdades acabam por lhe dar um mapa. Mas um mapa sem rota com o qual Fernando não consegue estabelecer um trajeto próprio, seu. Está condenando a transitar e não se sentir de verdade em lugar algum. Em Fernando, vemos retratado um drama geracional, uma espécie de burburinho infinito, de velocidade e descolamentos contínuos. Nunca tivemos tanto acesso a tantas coisas e nunca nos sentimos tão perdidos, tão deslocados.

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