Ulysses, de James Joyce, um convite para se perder

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James Joyce

E eis que em meio a uma conversa qualquer sobre literatura alguém te fala desta “coisa”. Te mostra o livro na estante, você sai de seu lugar, põe a mão na criança, a reação inicial fica entre o susto, a contemplação, a surpresa e “não faço ideia se vou ler isso”. Especialmente quando a coisa se trata do Ulysses, de James Joyce.

As 1100 páginas deste livro são inofensivas e menos assustadoras do que uma primeira impressão pode aparentar. Muito se comenta sobre a dita complexidade da obra ‒ uma narrativa “comum” já é suficiente para gerar múltiplas interpretações, e a forma escolhida por Joyce para narrar este singelo 16 de junho de 1904 faz isso elevado ao cubo.

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Presenciamos parte de uma aula lecionada por Stephen Dedalus, personagem criança em obra anterior de Joyce (Retrato do Artista Enquanto Jovem, publicado em 1916), na qual ele (sem sucesso) extrai o conhecimento dos estudantes. Depois do serviço, vai ao encontro dos colegas, conversas dosadas a identidades de gentes e nações com teores fermentados, pois o senhor Deasy, companhia de Stephen, afirma:

“‒ Não devo nada a ninguém. Nunca pedi um xelim emprestado na vida. O senhor consegue sentir isso? Não devo um tostão. Consegue?

Mulligan, nove libras, três pares de meias, um par de borzeguins, gravatas. Curran, dez guinéus. McCann, um guinéu. […]

‒ Por ora, não, Stephen respondeu.

O senhor Deasy riu com rico deleite, guardando o cofrinho.

‒ Eu sabia que não, ele disse prazeroso. Mas uma dia o senhor há de sentir. Somos um povo generoso, mas temos também de ser justos.

‒ Eu tenho medo dessas palavras grandes, Stephen disse, que nos deixam tão infelizes”. (p.133)

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Leopold Bloom (interpretado por Stephen Rea), na adaptação cinematográfica de Ulysses, “Bloom” (2003)

Do diálogo no bar, Dedalus e Leopold Bloom se encontram nalgum canto de Dublin. Bloom a falar de sua esposa Molly, aguardando-o no lar, mas as horas até ele chegar lá transcorrem de maneiras singulares, cada uma com sua fluidez. Porque na primeira hora estamos naquela sala de aula, e depois acompanhamos as personagens nos levando consigo em suas caminhadas prosaicas pelas ruas, o mundo mostrado por suas queixas contra um ou outro cidadão a prejudicá-los nos ofícios

“É engraçado como esses sujeitos da imprensa mudam de lado quanto o vento vira. Biruta. Quente e frio no mesmo bafo. Não dá pra saber em que acreditar. Cada estória é boa até você ouvir a outra. Caem uns em cima dos outros sem cerimônia nos jornais e depois tudo vira ar. Ave amigo benvindo um minuto depois.” (p.258-9)

Ou pelas mazelas (embora não confirmadas) de acordo com algumas personagens

“‒ Eles estão separados por uma vergonha carnal tão firme que os anais do crime do mundo, manchados por todos os outros incestos e bestialidades, mal registram esta infração. Filhos com mães, senhores com filhas, irmãs lésbicas, amores que não ousam dizer seu nome, sobrinhos com avós, presidiários com buracos de fechadura, rainhas com touros premiados.” (p.368)

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Stephen Dedalus (interpretado por Hugh O’Conor), no filme já citado

Um dos muitos detalhes de Ulysses reside nesta costura de temáticas. Seus protagonistas não estão discutindo os grandes problemas da humanidade. Estão apenas falando de si ou dos outros, em conversas refinadas ou maledicentes, em meio a afazeres quase comuns. Quase. Cada capítulo é uma andança em um lugar, da rua principal a consciência de uma personagem, seu passado dito de forma esparsa e discreta pelas falas alheias, o presente da narrativa estreitado por seus olhos.

As dezoito andanças que compõem Ulysses não são marcadas diretamente, sendo evidenciadas pelas mudanças (às vezes bruscas) de estrutura. Dos diálogos vamos aos monólogos interiores de pessoas-chave, correntezas de memórias e palavras coladas umas nas outras, forçando uma dupla decomposição do texto apresentado (vintecinco, custobenefício, contransmagnifiquebraicabrumtancialidade).

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Molly Bloom (interpretada por Angeline Ball), no filme já citado

Circe e Ítaca são dois exemplos deste mosaico narrativo. Aquele é contado como uma antiga peça de teatro ‒ nome da personagem e fala; este é um jogo direto de pergunta-e-resposta. Ítaca beira o detetivesco e a pura fofoca, Circe se aproxima do fantasioso e do surreal. E há também Penélope, o acelerado fluxo de consciência de Molly Bloom ‒ logo ela, antes aparecida nas falas do esposo Leopold Bloom e convivas.

“sim porque ele nunca fez uma coisa dessa de me pedir café na cama com dois ovos desde o hotel City Arms quando ele ficava fingindo que ficava de cama com uma voz de doente posando de príncipe praquela velha coroca da senhora Riordan que ele achava que tinha bem na palma da mão e ela não deixou nem um tostão pra gente tudo pras missas praela e a alma dela maior mãodevaca do mundo sempre foi tinha medo até de gastar 4p por álcool metilado dela me contando sobre todas as mazelas dela ela tinha era muito blablabla” (p.1037)

Difícil afirmar o foco de James Joyce com Ulysses. Uma história simples de contornos borrados, personagens urbanas conversando sobre mundos (o delas e o geral) como se fosse a próxima refeição, sem se ater a conversa fiada de bar ou a devaneio filosófico. Ulysses pode ser visto como um convite para se perder em meio a uma grande festa em Dublin, onde as ruas podem não levar ao destino aparente. Vamos?

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Da esquerda para a direita: Ezra Pound, John Quinn, Ford Madox Ford, e James Joyce. Em Paris (1923). Fotografia da Universidade de Cornell.

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