Em “Meu Ano de Descanso e Relaxamento”, a protagonista decide se dopar e hibernar por um ano na esperança da acordar em um mundo melhor.
A premissa: a decisão de hibernar por um ano
Um romance em que a protagonista decide hibernar por cerca de um ano, a fim de acordar revitalizada em um mundo que se espera mudado, talvez seja tudo o que alguém que tenha habitado o planeta Terra de 2020 para cá precise ler no momento para vivenciar a experiência máxima de identificação literária.
Coincidências à parte, o ano é 2000, a cidade é Nova York, e a narradora sem nome não vive no epicentro de uma pandemia global ou possui qualquer motivo aparente para querer dormir sem parar. Ela é linda, bem-sucedida e detentora de uma herança que a desobriga da mundana necessidade de trabalhar para obter algum sustento. Mesmo assim, o plano é este: entupir-se de remédios, em uma frequência assustadoramente crescente, a fim de preencher esses 365 dias em um estado semi-letárgico, quer dizer, sem precisar de fato vivê-los.
Essa é a premissa de Meu Ano de Descanso e Relaxamento (Todavia, 2019; tradução de Juliana Cunha), livro da autora norte-americana Ottessa Moshfegh, lançado originalmente em 2018, nos Estados Unidos. Como se pode perceber, é um romance sobre o isolamento, mas escrito antes que este tenha se tornado a norma. Talvez por essa razão as coincidências parem por aí: por certo, o sentimento de falta é comum a tanta gente no mundo calamitoso em que vivemos. Mas, se o que experimentamos hoje é consequência de fatores que nos são extrínsecos, o livro retrata uma personagem lidando com um vazio existencial que precede qualquer elemento exterior, consistindo esta sensação (ou a falta dela) justamente na causa que a mobiliza a tomar a drástica decisão que permeia toda a narrativa — e que, presume-se desde o início, tenderá a resultados desastrosos.
Extraindo graça de temas espinhosos
Deprimente a sinopse de Meu Ano de Descanso e Relaxamento, não? Muito pelo contrário. O que sobressai no romance é, principalmente, a forma escolhida por Moshfegh para contar uma história de aparente desalento com o mundo que, em suas mãos, torna-se uma narrativa hilariante, com um pé no absurdo, que chama atenção para o ridículo das situações vivenciadas pela protagonista em sua incessante busca pela perfeita sedação.
A propósito, o ponto alto do livro é a construção das personagens, a começar pela narradora, que — a despeito do profundo vazio que lhe habita e que só pode denominar-se depressão (embora este termo nunca seja usado por ela para dar nome diretamente ao que sente) — é detentora de um humor ácido capaz de extrair algum tipo de leveza dos temas ali tratados, aos quais costumeiramente se confere um peso incompatível com o humor e o riso.
Como o romance é narrado em primeira pessoa, é a partir dos olhos desta sagaz observadora que o mundo ao redor dela se desnuda, o qual, diga-se de passagem, é bem limitado. Há uma única amiga, Reva, que, tendo uma origem mais humilde do que a protagonista, inveja-a e almeja a todo custo atingir um padrão de beleza e lifestyle condizentes com a alta sociedade nova-iorquina, sendo constantemente espinafrada pela língua ferina da narradora.
Há também um ex-namorado, Trevor, com quem a narradora ainda mantém um relacionamento eventual que emana toxicidade. Por fim, há a engraçadíssima psiquiatra a quem a protagonista recorre para iniciar a sua saga medicamentosa, a dra. Tuttle, que, sem qualquer escrúpulo, receita-lhe todo e qualquer tipo de remédio com base em critérios, digamos, pouco ortodoxos, sem nenhuma relação com a real condição psiquiátrica da paciente.
Um texto que não abre espaço à monotonia, mas pode gerar controvérsias
Embora trate de um vazio, o texto da autora parece estar sempre repleto de acontecimentos, tanto no âmbito externo quanto no interno da mente da personagem principal. Isso se deve à sua hábil capacidade descritiva, além da aptidão para construir uma narrativa insólita, que faz rir ao mesmo tempo em que gera reflexão sobre um mal silencioso que tem afligido, de maneira cada vez mais frequente, as gerações contemporâneas.
Ainda assim, é compreensível que Meu Ano de Descanso e Relaxamento não seja um livro apto a agradar a todos, já que muita gente não deve estar disposta a aturar as lamúrias de uma jovem que, embora tenha tudo na vida — ao longo da narrativa, percebemos que não é bem assim, porém —, sofre por nada, enquanto há tanta miséria de verdade ao nosso redor.
Mas, entre uma geração que cresceu com a ideia de que felicidade é algo que se deve atingir quase que compulsoriamente — não importa se precisemos da ajuda de remédios para tanto —, ou que foi fadada à introspecção por circunstâncias alheias à sua vontade — como a necessidade de se isolar para não ser exposta a um vírus mortal, por exemplo —, é quase impossível não vislumbrar algum sentimento de empatia por esta jovem que precisa desvencilhar-se do peso de ser ela mesma por um tempo para, quem sabe, acordar em um mundo diferente, onde possa efetivamente ser feliz.
Conclusão: um deleite literário
Conflitos de identidade à parte, no momento parece ser o que todos queremos. Talvez a leitura deste livro contribua para que tenhamos algum tipo de descanso e relaxamento, ao menos no âmbito do mero deleite literário, enquanto aguardamos o fim destes tempos trevosos.
Créditos Homo Literatus
Esse texto foi escrito por Bibiana Lucas. A revisão é de Raphael Alves e a edição final de Nicole Ayres, editora-assistente do Homo Literatus.