Um calhamaço sem fim é um lugar especial

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Pensemos, o que torna obras longas tão especiais e o que as diferencia do resto?

 

 “Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Nem mais os farmacêuticos ilustrados se atrevem a grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminhos no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas não querem saber dos combates de verdade, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que atemoriza a todos nós, esse aquilo que acovarda e põe na defesa, e há sangue e ferimentos mortais e fetidez.”

2666, Roberto Bolaño

 

livros longosEstou de acordo com Oscar Amalfitano, protagonista da segunda parte de 2666 (uma dessas obras “grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminhos no desconhecido”). As grandes obras da literatura ocidental – ou pelo menos aquelas nas quais chegamos absolutamente deslocados ao final – não são construídas em poucas páginas, sendo o lugar onde os verdadeiros combates se dão.

Muitos escritores sabiam desse fato e o seguiram à risca. José Saramago não era um homem de poucas palavras. Mesmo nos primeiros romances da chamada fase luminosa, como Levantado do Chão, o Nobel luso já dava mostras de que não daria pouco pano para manga (verdade, 392 páginas não é um calhamaço; no entanto, também não pode ser, digamos, um livrinho fino). Seus romances subseqüentes sempre se mantiveram com uma média de 450 páginas, cheias de frases caudalosas em palavras e de especulações – quer literárias quer filosóficas.

O que falar então dos autores russos do fim do século passado? Dostoievski, nos seus romances da fase madura, não escrevia pouco. As obras parecem mais um labirinto no qual somos jogados e nunca temos certeza se um dia sairemos deles. Os Irmãos Karamazov, última obra dele, é um monumental romance de mil páginas (pelo menos na edição brasileira da Editora 34). Crime e Castigo, cujo mote é o assassinato planejado por Raskonikov e suas conseqüências, também é uma obra extensa, tentando de alguma forma abraçar todo o mundo russo da época, transmitindo aos leitores muito mais do que uma obra comum o faz. (e nem falemos de Guerra e Paz, de Tolstói, pois suas três mil e tantas páginas são um cartão de visitas e tanto).

Poderíamos incluir uma lista sem-fim de autores do século dezenove dados a livros sem fim, mas talvez não passasse de masturbação mental e ato citatório barato.

Pensemos, então, o que torna essas obras longas tão especiais e o que as diferencia do resto? Bem, as respostas são muitas e podem ser resumidas num ponto: há uma infinidade de assuntos e temas a serem tratados em obras longas, logo os riscos, como posto por Amalfitano, são muito maiores. Os autores se jogam num caminho incerto ao aceitarem o desafio de criar algo monumental em termo de narrativas. Murakami, em 1Q84, sabia disso e se dispôs a criar uma história capaz de abarcar assuntos muito variados, indo além da simples trama. Ele, como os outros autores de calhamaços, queria tentar algo além da perfeita concisão das grandes obras – um fato irritantemente instigado hoje, não só no Brasil, mas no mundo como um todo. Narrativas mais longas, ainda como põe Amalfitano, dão a possibilidade dos autores divagarem naquelas áreas mais obscuras, transitando em assuntos pantanosos com toda profundidade que desejarem, o que traz grandes resultados às vezes.

Então, isso quer dizer que devemos negar os autores mais contidos e os contistas? É claro que não. Borges não deixará de ser um grande autor por ter suas narrativas voltadas ao conto. Graciliano Ramos nunca deixará de ter sua beleza e carisma devido a sua concisão – muito pelo contrário, é nela que habita ambas as qualidades. Outros autores, acostumados a serem mais breves, também não cometem nenhum pecado por construírem obras relativamente pequenas (Lembrem das palavras de Garcia Márquez: Uma coisa é uma história longe, e outra uma história alongada).

Assim sendo, dê uma chance aos calhamaços sem fim e veja como eles são o lugar onde nossos autores dão a vida para atingir aquele ponto exato no qual a literatura dá uma guinada para frente.

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