Um chamado João

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guimaraes-rosa-e-cavalo No documentário Sergio Leone: era uma vez um sonho americano, o diretor italiano é questionado a respeito da diferença entre o western americano e o spaghetti italiano. Ele diz que o primeiro é uma ficção pautada num determinado contexto histórico e o segundo é uma fábula, na qual personagens mágicos e misteriosos protagonizam narrativas que levam em conta muito mais o aspecto maravilhoso e lendário da trama. Se as estórias de João Guimarães Rosa fossem representadas como filmes de bangue-bangue, certamente se enquadrariam no gênero italiano de faroestes. Ainda não sei direito qual a sensação que tenho ao ler as narrativas poéticas deste mineiro de Cordisburgo. Minhas histórias favoritas são as que poderiam ser adaptadas para o cinema de diretores como Leone. A vingança, as terras onde não há delegado ou juiz, em que tudo é resolvido na ponta da faca ou no gatilho da garrucha. Um mundo distante do real, mas que está longe de ser ficção. Há a linguagem que foge e retorna ao formalismo, reproduzindo a oralidade popular sertaneja. Como leitor que foge dos hermetismos de poemas, confesso-me incomodado, desafiado a analisar as idas e vindas, os prováveis e improváveis neologismos, as construções e desconstruções de palavras, formando períodos que tocam até mesmo aqueles que não enxergam poesia.

Eu vi o mundo fantasmo.

Esta frase, com inesperada e poética inversão de gênero, foi proferida por Riobaldo ao ver seus jagunços sendo surpreendidos pelo feroz ataque do bando de Hermógenes, em Grande sertão: veredas. Acredito que o fantasmo seja para definir o indefinido, relatar o que não se pode relatar. Uma cena inconcebível, algo que fez Tatarana pegar mais do que depressa em suas armas e partir para o combate. Eu também poderia ter dito a mesma frase ao ler, pela primeira vez, o conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, pertencente à obra Sagarana. Li e reli inúmeras vezes o percurso de Nhô Augusto, que começa a história como um impiedoso e carniceiro indivíduo, até ter seu pequeno castelo de areia derrubado, ser impiedosamente maltratado e ganhar uma segunda chance do destino. Torna-se homem honesto, caridoso e trabalhador, até completar seu ciclo de maneira heroica, quase como um santo. Ainda em Sagarana, vi o mesmo mundo fantasmo que Riobaldo em “Duelo”, peleja psicológica travada entre Turíbio Todo e Cassiano Gomes. Cavalgando por trilhas que se entrecruzam e emparelham, os dois cavaleiros nunca chegam às vias de fato. O desfecho mostrará que tamanha saga não terá vencedor. Enfim, são as particularidades do sertão.

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Guimarães Rosa e seus gatos

Guimarães Rosa foi, além de escritor completo, sujeito de muitas funções, como relatam Edna Maria Nascimento e Lenira M. Covizzi no pequeno livro João Guimarães Rosa: homem plural escritor singular. Formado em medicina e apaixonado por animais, seu fascínio por línguas estrangeiras fez com que enveredasse para a carreira diplomática, atuando na Alemanha da Segunda Guerra Mundial. Médico? Diplomata? Contista? Romancista? Poeta? O que era João Guimarães Rosa? Qual a extensão de sua obra? Há quarenta e seis anos, ele nos deixou sem resposta. O sujeito que mais se aproximou de uma réplica talvez tenha sido Carlos Drummond de Andrade, quando publicou no Correio da Manhã, em 22 de novembro de 1967, o poema “Um chamado João”. Como resposta a mim mesmo, escolhi os seguintes versos:

Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar.

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