Um jornalismo de terno e gravata: a elegância literária de Gay Talese

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Gay Talese e sua elegância literária fizeram história, mudando a forma de fazer jornalismo. Sua trajetória fala por si só.

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Gay Talese: elegante nos textos e no vestuário

Um jornalismo elegante, que seduz e hipnotiza, como se ao invés de estarmos lendo uma reportagem estivéssemos devorando uma obra literária. A leitura é tão imersiva e agradável que somos impelidos a nos questionar: como um jornalista consegue ter tamanha exatidão em detalhes e informações a ponto de conseguir transmitir os pensamentos de um personagem de maneira tão minuciosa? O estilo narrativo é elegante e, assim como seu dono, veste terno e gravata.

Além de romper os padrões de escrita jornalística, Gay Talese, um dos precursores do Jornalismo Literário, também quebra a imagem preconcebida de que todo jornalista é relaxado para se arrumar. O bom gosto para o vestuário vem de família: a mãe Catherine tinha uma loja de vestidos e o pai Joseph, italiano que chegou ao solo americano em 1922, era alfaiate. “Aprendi com a minha mãe: deixe as pessoas falarem, não as interrompa. Com meu pai: o que é feito à mão é melhor que o feito com máquina”, declarou em 2012 à Folha de S. Paulo.

Não é à toa que o autor está presente em todas as estantes das bibliotecas acadêmicas do curso de Jornalismo: os textos são atemporais, sem prazos de validade, com histórias que só ele e mais ninguém sabe transmitir em palavras. Nascido em Ocean City, no estado de Nova Jersey, o americano é um dos poucos autores com a capacidade de fazer o leitor achar extremamente interessante saber o número de chicletes grudados no metrô de Nova York. Seu nome é Gay Talese, mas bem que poderia ser apelidado como senhor “Profundidade”, “Detalhe” ou “Precisão”, as principais marcas de sua narrativa.

Com 82 anos, Talese tem um currículo invejável. Trabalhou no New York Times de 1955 a 1965 e, de lá, além de reportagens, também veio um livro que traz histórias de bastidores do jornal que virou uma de suas obras mais famosas: O Reino e o Poder (1969). Aliás, livros-reportagem não faltaram em sua carreira. Em Honra Teu Pai (1971), o jornalista dá um mergulho no universo da máfia ao contar a história da família de Joseph “Joe Bananas” Bonanno. Já no livro A Mulher do Próximo (1981), Talese traça um painel sobre as mudanças de costumes sexuais que aconteceram nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970. Também é necessário mencionar Fama e Anonimato (1973), uma reunião de reportagens publicadas nas revistas Esquire e The New Yorker. Entre elas, encontra-se “Frank Sinatra está resfriado”, um dos perfis mais famosos da história do jornalismo.

Um exímio perdedor

Nascido em 7 de fevereiro de 1932, Talese estreou no mundo jornalístico aos 15 anos, escrevendo sobre beisebol. Em 1950, conseguiu ingressar no curso de Jornalismo na Universidade do Alabama. Mas não foi um processo fácil: antes disso foi rejeitado por diversas faculdades. Por incrível que pareça, Inglês era a matéria em que Talese se saía pior no colégio. Talese em Vida de Escritor, obra autobiográfica lançada no Brasil em 2009, diz:

Ter sido aceito pela Universidade do Alabama deveu-se inteiramente aos apelos de meu pai a um magnânimo médico de Birmingham que clinicava em nossa cidade e usava ternos cortados e costurados com perfeição por meu pai, e aos pedidos desse médico, em meu favor, a um antigo colega de classe e amigo de toda a vida, que na época ocupava o cargo de reitor de admissões daquela universidade.

Foi na faculdade que a sua escrita passou a ganhar ares literários, graças a influências de autores como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Carsom McCullers – o que acabou se refletindo nas crônicas e críticas esportivas que escrevia. Talese conseguia abordar as piores derrotas dos times de faculdade de uma maneira rebuscada e sutil, suavizando, de certa forma, a situação negativa do time. Ele explica na autobiografia:

Embora meus textos evasivos e cheios de rodeios pudessem ser em parte atribuídos ao desejo de manter relações amistosas com os atletas e incentivá-los a conceder constantes entrevistas, creio que essas questões práticas tinham muito menos a ver com meu estilo do que minha própria identificação juvenil com a derrota e com o fato de que, com exceção da habilidade para escrever textos que douravam a dura crueza da realidade, eu não era capaz de fazer nada fora do comum.

Em um relacionamento sério com o Jornalismo

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Para Talese, escrever é a forma de comunicação mais eficiente

Imagine Gay Talese usando um bloquinho de anotações durante uma entrevista ou fazendo pesquisas prévias pela internet. Só resta mesmo imaginar: ele não anda com aparatos tecnológicos. Nada de Google, celular ou e-mail – o jornalista é tradicional e usa apenas pequenos cartões para leituras e breves anotações. Para Talese, o repórter tem que ir às ruas, “bater perna”. “Não quero obter informações através da tecnologia. Quero me esforçar para estar lá”, disse em entrevista ao programa Roda Viva em 2009. O hábito não deveria se incomum, mas soa estranho aos acostumados às práticas jornalísticas atuais em que o tempo enxuto é um dos itens mais valiosos nas redações.

Para o jornalista, a relação entre repórter e fonte pode ser comparada à de um vendedor com seus clientes. Jornalismo é sedução. “Você conhece alguém na rede social, sai, almoça, passeia e ficam íntimos. Há um paralelo com o tipo de jornalismo que faço. Às vezes, nós, jornalistas, somos sedutores. E não quero ser o sedutor de uma noite só, mas sim um parceiro de uma relação”, disse Talese à Folha.

Além de sedução, jornalismo também é categorizado por ele como uma forma de arte, que atua, por sua vez, à favor de personagens não valorizados como notícia pela mídia. Contrariando a maré, Gay Talese utiliza sua escrita para dar luz aos anônimos, não se preocupando em buscar “furos” jornalísticos como muitos colegas de profissão fazem. Prefere priorizar aos que, mesmo estando à vista de todos, não costumam ser observados, como, por exemplo, um redator de obituário ou um vigia de letreiros.

“É preciso escrever como um escritor de ficção, ainda que você esteja lidando com fatos reais”

Histórias boas e bem contadas podem garantir a existência do jornal impresso. É o que acredita um dos principais nomes do New Journalism (termo que, aliás, repudia). Entretanto, para que isso aconteça, é necessário praticar um jornalismo que preze pelo trabalho de pesquisa, acuidade, paciência e pela escrita requintada e envolvente.

Histórias bem escritas sempre terão leitores, diz Talese. Veja entrevista concedida à TV Folha em 2012:

O processo de escrita sempre foi doloroso ao jornalista. Em uma das passagens de Vida de Escritor, ele define escrever como “dirigir um caminhão à noite sem farol, perder o caminho e passar uma década em um buraco”. Pelo tempo maior que costuma levar para apurar e finalizar a escrita, muitas de suas reportagens acabam não conseguindo espaço em jornais e revistas. Por isso, a grande quantidade de livros: são mais de dez  publicados. “O jornalismo deveria ser literário. Não deve ser ficção, claro, mas literário. E pode ser,”, apontou na TV Cultura.

Ao contrário de outros autores do Jornalismo Literário como Tom Wolfe, Talese não escreveu livros de ficção.

Escrevi um conto de ficção em 1967. Mas logo perdi o interesse porque achei que se jornalistas como eu pudessem estar com as pessoas, eu encontraria nas pessoas algo além da ficção. Porque eu acreditava, e acredito, que as pessoas, ainda que não sejam famosas para terem seus nomes nos jornais, têm histórias extraordinárias.

Além do resfriado de Sinatra

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Edição da Esquire (1966) em que foi publicado o perfil de Frank Sinatra

Gay Talese é famoso por escrever perfis marcantes, como o que fez do cantor Frank Sinatra, Frank Sinatra está resfriado. Publicado em 1966 na revista Esquire e também presente em Fama e Anonimato, o texto foi escrito sem constar uma entrevista com o perfilado. Apesar de o jornalista não conseguir falar com Sinatra, foi persistente e não desistiu da pauta, ouvindo dezenas de pessoas ligadas ao cantor. Através de depoimentos e observações, conseguiu criar um retrato do famoso como ninguém da mídia havia escrito. Em 2003, a Esquire republicou o perfil por considerá-lo o melhor da revista em 70 anos. Leia aqui o texto em inglês ou em português.

Mas o perfil do Sinatra não é o texto predileto do autor. A história que mais gostou de escrever foi sobre o encontro de Fidel Castro e Muhammad Ali em Havana, em 1996.

Abaixo, o trecho do programa Roda Viva, da TV Cultura, em que Gay Talese comenta sobre o encontro.

A Revista The Nation, uma revista pequena, mas muito respeitada, publicada em Nova York, perguntou se eu iria com Muhammad Ali e um grupo de 50 pessoas que o acompanhavam em um avião particular de Miami para Havana. Devido ao longo embargo americano, havia uma enorme necessidade de suprimentos médicos. O governo americano havia permitido que Muhammad Ali e seu grupo fossem a Havana. E a revista me pediu que os acompanhasse, pois haveria um encontro com Fidel Castro. Pela primeira vez na minha vida eu veria juntas duas pessoas importantes que haviam enfrentado a pressão dos Estados Unidos em tempos de guerra e de paz. Fidel Castro, desde 59, resistia não apenas ao ultrajante boicote e à difamação, mas também sobrevivera a conspirações para assassiná-lo. (…) E ali estava essa outra pessoa, um americano, um afro-americano que, durante a guerra do Vietnã, teve coragem de não se vincular às políticas do Pentágono e dizer que não lutaria aquela guerra contra os vietcongs. Aquilo foi corajoso, talvez desrespeitoso e não patriótico. Ele foi punido e não pode lutar por alguns anos. Achei que o encontro desses dois opostos não convencionais – um deles no mundo do boxe, mas também da política; e o outro, o líder de uma nação que estava em uma situação de agitação desde 1959 – seria genial. O encontro não foi verbal, porque Muhammad Ali sofria de Parkinson. E eu não sabia como ele estava quando aceitei o trabalho, por isso não falei com ele, como não havia falado com Sinatra 25, 30 anos antes. Mas não é importante falar com as pessoas, necessariamente. Acho que o papel do jornalismo não exige verbosidade ou perguntas e respostas e sim a observação das pessoas. E, às vezes, a linguagem corporal é muito mais importante do que toda aquela tecnologia que prevalece hoje em dia.

Veja o vídeo completo da entrevista de Gay Talese ao programa Roda Viva:

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