Consagrado como o maior cânone da literatura brasileira, o romancista, dramaturgo, contista, cronista, jornalista, tradutor, crítico literário, e fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis, foi um negro que cresceu no subúrbio carioca tendo concluído apenas o ensino primário.
Na sua condição étnica e social, filho de pai mulato pintor de paredes e de uma lavadeira portuguesa, se levarmos em consideração alguns aspectos sócio culturais de sua época, e que ainda se respigam anacronicamente nos dias de hoje, tinha tudo para dar errado na vida, ou melhor, estar longe da vida letrada que passaria a levar e que, consequentemente, o consagraria, senão fosse um homem perspicaz, audacioso, sensível e dono de uma genialidade única que, pouco a pouco, foi desenvolvendo, e assim sendo notada e, na medida do tempo, de sua maturidade intelectual, reconhecida.
Nos seus últimos anos, muita coisa havia mudado se comparado aos seus primeiros, e sem dúvida para melhor. Joaquim Maria Machado de Assis, felizmente, conseguiu aproveitar em vida sua fama, e na morte, imortalizou-se como uma lenda, como o mestre de nossas letras.
Mas como se esquecer do amor doentio de Bentinho por sua amada Capitu, a dona dos mais conhecidos e enigmáticos olhos de ressaca, e que por trás deles… o que escondiam? Uma possível mancha de traição vivenciada entre ela e Escobar ou apenas o reflexo da própria obsessão de seu amado? Este infeliz e simpático sujeito, com um humor triste que fora consagrado com o apelido de Dom casmurro (“(…) não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhes pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.”), publicado em 1899. E como não se surpreender e se encantar com um defunto que decide voltar para o mundo dos vivos para reunir suas Memórias Póstumas, percorrendo sua infância e juventude seguindo até a maturidade? Sem dúvida, sua obra mais irreverente e inovadora, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881.
Muito é falado de seus romances e contos, de suas peças de teatro, traduções e crônicas, como até mesmo de suas contribuições na imprensa brasileira, onde Joaquim Maria trabalhou intensamente e em diferentes campos. Porém ainda há aqueles que desconhecem que o criador de emblemáticas personagens como Helena, (o defunto mais conhecido da história da literatura) Brás Cubas, Bentinho, Capitu e Quincas Borba, também tenha sido um poeta. Um grande poeta.
Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.
Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.
Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.
Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.
A uma senhora que me pediu versos, Machado de Assis
Na conjuntura de suas poesias, poemas e sonetos foram explorados os sentimentos, a vida e as sinestesias do mundo que o cercava, retratando como em fotogramas o rítmico compasso que sintetizava com elevação o doce lirismo de sua cadeia reflexiva de versos.
Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?
Livros e flores, Machado de Assis
Crisálidas, Falenas, Americanas e Ocidentais são os títulos (quase que primaveris) dos quatro livros de poesia do Bruxo do Cosme Velho (apelido adquirido vide ao bairro do Rio de Janeiro onde passa viver seus últimos anos de vida, e ganhando força com o poema “A um bruxo, com amor”, de Carlos Drummond de Andrade), publicados cronologicamente em 1864, 1870, 1875 e 1900, formando com o último sua respectiva obra poética completa.
É impossível não se encantar ou mesmo comover-se com alguns dos admiráveis trabalhos poéticos deste intelectual que esteve em todas às frentes dos gêneros de nossa literatura.
Dois horizontes fecham nossa vida:
Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro, —
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.
Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais.
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.
Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.
No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.
Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.
Dois horizontes, Machado de Assis
Seu primeiro poema, intitulado Ela, foi publicado em 1855, no jornal Marmota Fluminense, de Paula Francisco Brito, onde passa a ser colaborador, quando Joaquim Maria tinha apenas dezesseis anos de idade.
Seus olhos que brilham tanto,
Que prendem tão doce encanto,
Que prendem um casto amor
Onde com rara beleza,
Se esmerou a natureza
Com meiguice e com primor
Suas faces purpurinas
De rubras cores divinas
De mago brilho e condão;
Meigas faces que harmonia
Inspira em doce poesia
Ao meu terno coração!
Sua boca meiga e breve,
Onde um sorriso de leve
Com doçura se desliza,
Ornando purpúrea cor,
Celestes lábios de amor
Que com neve se harmoniza.
Com sua boca mimosa
Solta voz harmoniosa
Que inspira ardente paixão,
Dos lábios de Querubim
Eu quisera ouvir um -sim-
P’ra alívio do coração!
Vem, ó anjo de candura,
Fazer a dita, a ventura
De minh’alma, sem vigor;
Donzela, vem dar-lhe alento,
“Dá-lhe um suspiro de amor!”
Ela, Machado de Assis
Em 1864, aos vinte cinco anos, teve seu primeiro livro publicado. Não se tratava ainda de sua prosa, e sim do seu primeiro volume de poemas, intitulado Crisálidas; passando a ser conhecido entre os influentes intelectuais de sua época, no Rio de Janeiro, onde podemos destacar: José de Alencar, Francisco Otaviano e o escritor francês Charles Ribeyrolles.
Sua obra poética é divida em duas partes: a fase romântica, caracterizada pelas influências de autores românticos e árcades. Neste momento, Machado não exibe grande preocupação formal, ainda que desempenhe uma linguagem muito bem manejada, com temáticas românticas ora como nacionalistas, e que estão registradas nos seus três primeiros livros (Crisálidas, Falenas e Americanas). E a segunda e última fase, que se desvincula da primeira, passando a trabalhar com uma estética puramente parnasiana, contudo, de raízes brasileiras, na qual se exalta o conceito da arte pela arte e explora uma temática demasiadamente pessimista e de cunho filosófica. Tendo como seus sonetos mais famosos, um em homenagem a sua mulher, Carolina Xavier de Novais, irmã de seu amigo, o poeta Faustino Xavier de Novais.
Considerado o último escrito de Machado de Assis, o soneto À Carolina, publicado em Relíquias de casa velha, em 1906, foi destacado por Manuel Bandeira como “uma das peças mais comoventes da literatura brasileira”.
O homem que ganhou dimensão estrelar e fama internacional fora abatido por uma forte tristeza com a perda de sua amada, em 1904, e confidenciou em carta ao amigo Joaquim Nabuco, em 20 de novembro: “Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou eu só no mundo.”
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te flores, – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
À Carolina, Machado de Assis