Um serviço pra lá de Kafkaniano

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Você já leu Kafka? Tenho um amigo que faz um trocadinho infame toda vez que eu faço essa pergunta. Ele diz que nunca leu Kafka, mas adora comer kafta, bebendo uma cervejinha. Mas você já leu Kafka? Franz Kafka. Aquele escritor tcheco, magrinho, que escrevia em alemão, autor de uma novelinha que um tal de Gregor Samsa acorda, de sonhos inquietos, metamorfoseado num terrível inseto. Sacou? Se tu não leu, tem que ler, bicho, tem que ler…

Eu tenho uma teoria. Todo operador de telemarketing é versado em Kafka. É condição sine qua non para o exercício da função. Imagino como seja a seleção para labutar no serviço de call center: a moça do RH, pergunta: “quais as características do universo kafkaniano?” Os postulantes às vagas respondem, em uníssono: “O absurdo! O surreal, o desconhecido, o confuso, o ilógico, a burocracia!”

E é justamente isso que eles fazem com a gente. É ou não é? Quando tempo perdemos cada vez que somos obrigados a resolver algum probleminha pelo telefone? Quantos menus temos que ultrapassar e quantos números temos que digitar antes de conseguir falar com uma pessoa, que pode complicar mais ainda as coisas?  É Kafka sendo usado para o mal o que estar por trás da saga de caminhos labirínticos do call center que não levam a lugar nenhum.

Nos livros de Kafka, os personagens sempre estão à volta com repentinos problemas dos quais nem sequer conseguem identificar a causa quanto mais chegar próximo de qualquer solução. Para ficar em dois célebres exemplos, em O processo, Josef K. tem que se defender de uma acusação que ele nem ninguém sabem do que se trata. Em O Castelo, K é um agrimensor que deve chegar ao castelo do título para trabalhar, mas entrar no dito cujo é tarefa kafkaniana.

Outro dia, depois de 11 minutos navegando pelos menus do call center, com intuito de cancelar o (des)serviço de internet banda larga de uma operadora de telefonia, quando o PROCON diz que isso deve ser feito imediatamente, enfim consegui falar com uma operadora, que encaminhou a minha exigência para outro setor, do qual ainda me transferiram (tendo sempre que explicar toda a ladainha a cada nova transferência) para a pessoa que deveria pôr fim à minha via-crúcis.  Quando a operação estava prestes a ser concluída:

– Senhor Davidson, senhor Davidson, eu não estou te ouvindo, eu não estou te ouvindo.

– Como?!

– Senhor Davidson, senhor Davidson, eu não estou te ouvindo, eu não estou te ouvindo.

– Ué, cê pediu para eu aguardar um momento na linha – justifico o meu silêncio.

– Mas não estou te ouvindo, senhor Davidson. Não estando te ouvindo, por isso tenho que encerrar a chamada sem concretizar o serviço. Um, dois…

– E se eu não quiser mais cancelar o serviço?!

– Quê?!

– Haha!!! Te peguei!

– Engraçadinho. Pare de brincadeira comigo. Respeite o meu trabalho, senhor Davidson.

– Cê não tem senso de humor não, moça?

– Senhor Davidson, senhor Davidson, eu voltei a não te ouvir. Terei que encerrar a ligação, sem concretizar o serviço. Repito, terei que encerrar a ligação, sem concretizar o serviço.

– Faz isso não, moça…

Tu, tu, tu ,tu, tu…

É ou não um serviço pra lá de Kafkaniano?

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