Talvez o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) seja mais conhecido nacionalmente devido ao célebre ensaio sobre a história cultural brasileira, intitulado Raízes do Brasil (1936), do que pela sua atuação como jornalista internacional. Nesse sentido, os dois volumes de Escritos coligidos (2011), que abrangem o período de 1920 até 1979, organizados por Marcos Costa e publicados pela Editora da Unesp, revelam para o público leitor um Sérgio Buarque que transitou com desenvoltura e erudição pelos campos da crítica literária e história da arte.
Enquanto esteve na Europa, especificamente na Alemanha, teve um contato profundo com a sociologia de Max Weber e entrevistou o literato Thomas Mann, que havia acabado de receber o Nobel de Literatura. Lá também, em setembro de 1929, Sérgio publicou artigos como o “Statt Jeder Vorrede” [Em lugar de qualquer prefácio], no periódico Duco, de Berlim: só recentemente traduzido. Na ocasião, o autor chamou a atenção dos alemães para os últimos progressos alcançados em um país de dimensões continentais; a exuberância da fauna e flora local, mas também alertou os estrangeiros para contradições presentes até hoje em nossa realidade. Ao lado de “um esplêndido desenvolvimento, consistentes realizações científicas em institutos de pesquisa e ensino de renome mundial, riqueza e luxo convivem em imediata vizinhança com uma existência nua e original, envelhecida, no quadro geral decadente, muitas vezes do maior primitivismo” (p. 28). A otimista crônica termina com uma exaltação do potencial econômico do país, sobretudo para o capital estrangeiro e um cordial convite: “a Alemanha não pode ficar de fora. Dois países que tem tanto a oferecer um ao outro precisam se conhecer melhor” (p. 29).
Em dezembro de 1929, a citada revista Duco publicou o artigo “Karl von den Steinen”. Trata-se de uma apologética desse etnólogo germânico que havia acabado de falecer aos 74 anos de idade em Kronberg. Além de auxiliar os psiquiatras na clínica universitária do Charité, Steinen foi diretor do Museu de Etnologia de Berlim. Esse fato foi decisivo para o pesquisador abandonar o interesse pela Medicina e passar a investigar fenômenos antropológicos. Entre os feitos de Steinen, Buarque de Holanda destacou duas expedições feitas pelo etnólogo até o alto Xingu no Amazonas: “os resultados de suas pesquisas, expostos nos livros Através do Brasil e sobretudo em seu notável Unter den Naturvolken Zentral-Brasiliens [Entre as populações primitivas do Brasil central] asseguram-lhe a reputação de uma das mais notáveis autoridades acerca da Etnografia sul-americana” (p. 33). De acordo com a poética digressão biográfica de Sérgio, Karl von den Steinen “vivia uma vida solitária de meditação e estudo. (…) Uma existência tão cheia de serviços à causa da ciência e que aos brasileiros deveria ser particularmente grata” (p. 34).
Em abril de 1930, ainda na Duco, o historiador publicou o artigo “Die moderne brasilianische literatur” [A moderna literatura brasileira]. Esse texto é significativo na medida em que pode ser interpretado como um verdadeiro documento de afirmação das elites intelectuais paulistas que deflagraram a insigne Semana de Arte Moderna de 1922. Nomes como o de Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Mário e Oswald de Andrade são exaltados e apenas Manuel Bandeira, que vivia no Rio de Janeiro, é considerado enquanto um “precursor desses anseios de libertação” (p. 41). Anseios pela libertação do parnasianismo, classicismo e do barroco que já existiam muito antes da Semana de Arte Moderna, conforme a literatura de um Lima Barreto, por exemplo, atesta. Atualmente parece um exagero laurear os modernistas de São Paulo como uma vanguarda profundamente transgressora, quando, na verdade, um crítico literário respeitável como Antonio Arnoni Prado já evidenciou os vínculos conservadores existentes entre os modernistas e o integralismo brasileiro: a nossa versão nheengatu do fascismo.
Aliás, o próprio Arnoni Prado, no ensaio “Raízes do Brasil e o modernismo”, publicado na coletânea Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil (1998), esclarece que o jovem Sérgio carregou a pena nas tintas do ressentimento e da impaciência ao evocar todo o desapreço dos colonizadores portugueses – em geral, incultos e rudes – pelas belezas naturais e pelos nativos brasileiros. Além disso, o autor de Raízes do Brasil estipulou que, na maioria das vezes, o louvor excessivo do Brasil oculta um inconsciente desprezo pela nossa realidade.
Em linhas gerais, prevalece a impressão de que a estadia em território germânico e o papel que desempenhou de mediador entre o Brasil e a Alemanha, sempre de forma muito arguta e erudita, foi essencial para Sérgio Buarque passar por um processo de maturação intelectual que o tornou uma referência sobre a formação da cultura brasileira.